A liberdade à distância de um gesto

Foto
Na sua nova criação, Meg Stuart, a coreógrafa da reflexão social, do movimento feito grito, deixa o colectivo e abraça a comunidade DR

Meg Stuart chegou ao Festival de Avignon com uma convicção: "É preciso ultrapassar os nossos limites."Violet, a sua mais recente criação, é essa ideia testada no corpo de cinco bailarinos e um músico, aos quais forçosamente se juntam os espectadores, prisioneiros de uma coreografia tão sonora quanto física. É um risco, diz a coreógrafa. É um prazer, dizemos nós

A coreógrafa Meg Stuart prefere não desvendar directamente o que se supõe com o título da sua nova peça, estreada a 7 de Julho em Essen, na Alemanha, e que passou esta semana pelo Festival de Avignon. Chega a Portugal para abrir a programação do Maria Matos, em Lisboa, de 15 a 17 de Setembro, seguindo depois para Guimarães, para o Centro Cultural Vila Flor, a 22 de Outubro, e chama-se Violet, como a cor que está no limite do que depois já não se vê. Violet como a flor, o cheiro, a cor da paixão religiosa. Violet, "porque é uma palavra bonita", diz a coreógrafa ao P2. "Não me interessa explicar o que é, porque quero convidar os espectadores para uma viagem com os intérpretes." Eles, vozes singulares numa linha que se atravessa no nosso horizonte e não nos larga, hipnótica, violenta, irresistível.

Meg Stuart, a coreógrafa da reflexão social, do movimento feito grito numa paisagem sem regras, deixa o colectivo e abraça a comunidade, ou uma certa ideia de comunidade. "Não acho que seja uma ruptura no meu trabalho", começa por dizer, aludindo às reacções que a peça já foi tendo. "Acho que há uma pesquisa mais profunda de coisas que me interessam cada vez mais: a voz individual, como é que não se parte logo para a agressão, como pode o movimento ser, mais do que experimentação, uma experiência."

Violet joga com vários tempos e planos simultaneamente. Os cinco bailarinos são essas vozes individuais, "cada um procurando o seu espaço", num território comum, desenhado pela música improvisada de Brendan Dougherty, artista norte-americano, virtuoso da música experimental.

O que se passa em palco é um exercício que vai para lá do virtuosismo do intérprete, prisioneiro no interior de uma estrutura que parece simples, mas obedece a uma lógica complexa. "Queria desafiar o meu próprio movimento, e as minhas próprias ideias, limitando, impondo certos desafios ao corpo", diz Meg Stuart, falando das regras que estabeleceu, primeiro para si, depois nos bailarinos. "Não há muita margem para o improviso e o trabalho precisa, constantemente, de ser afinado." Caminhando na nossa direcção, sem hipótese de retorno, tolhidos por uma enorme parede negra, aparentemente curvados pela música, limitados por um público que os observa e os espera, são movimentos que rejeitam uma ilustração e que "não acreditam na fuga".

"O que procuram resolver é o que podem fazer dentro dessa estrutura precisa sem deixarem de ser racionais."

Há quem fale de transe, e houve, efectivamente, na primeira apresentação, uma espectadora que teve que abandonar a sala por ter entrado no que foi descrito como um ataque de pânico e histerismo que a levava a interagir com os bailarinos. Pode acontecer.Violet é, afinal "o lugar onde se encontra a abstracção". Mas Meg Stuart prefere relacionar o movimento a uma ideia de misticismo, quase de ritual xamanístico.

Foi por aí que andou a pesquisar, tendo tudo começado quando encontrou um baterista nas ruas do Rio de Janeiro que não podia tocar ali, na rua, por ser interdito. Ela usou o seu corpo para fazer nascer o movimento, num diálogo que se estendia para lá da previsível espiral de intensidade. "Não me interessa que se perca o controlo", conta, falando de um movimento que, ao contrário do que é hábito nas suas peças, não funciona por acumulação de energia, mas pelo contrário, "precisa ser consciente da sua força logo desde o início". "Não me interessa o esgotar da forma, nem a exaustão do movimento", diz. Viu peças que trabalhavam "a partir de um êxtase positivo, um êxtase que nos conduz para além dos limites do corpo, quando este é invadido de felicidade", mas o que lhe interessou foi descobrir como se podia ser "consciente no interior dessa felicidade". Os bailarinos, sempre em cena, "dissolvem e reconstroem, através de ciclos e repetições", o próprio movimento. São a base de uma viagem "ao interior da própria dança", explica a coreógrafa, convocando um movimento "do espírito", mais do que "um movimento do corpo". "Os bailarinos não deixam nunca de pensar onde está o limite desse mesmo movimento", acredita, perguntando-se permanentemente se esse limite está no que fazem ou no que é dito através do que fazem.

Violet é uma peça que abandona as "superimpositivas" estruturas cénicas a que nos habituámos no trabalho recente de Meg Stuart, mas que não deixa de criar uma certa ideia de pressão. "São matérias que nos fazem seguir em frente, que não nos dão margem de recuo." Será isso que significa aquela parede negra, que no início esteve para se mover e que esperamos, realmente, o tempo todo, que esmague os bailarinos. Será isso que faz a banda sonora, que trabalha espaço e tempo através da repetição de cânones que se vão acumulando e que obrigam o movimento a afirmar a sua própria identidade por entre a massa de sentidos que a partitura sugere. "O mais importante está no fosso entre o que somos e o que pensamos que somos, entre o que queremos e não queremos, nesse espaço onde há um vazio e ao qual procuramos dar uma forma", explica. A coreógrafa fala ainda de "um processo de revelação do próprio movimento" que não é nem uníssono nem finito. O corpo é usado "como instrumento para o desenvolvimento de formas de percepção, de movimento e de encontros ocasionais com forças energéticas", diz.

São essa forças, esses momentos em que no mesmo movimento se encontra a quebra e a força, que fazem de Violet uma peça que deixa a coreógrafa orgulhosa, numa altura em que a palavra que mais lhe agrada repetir é "invenção". "Não sei se alguma vez fui tão livre", confessa.

Sugerir correcção