Estamos a morrer mais na estrada e por despisteAno negro

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daniel rocha

Acidentes rodoviários mataram mais pessoas em 2010.Associações querem maior responsabilização, o Governo responde com a revisão da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária. ?Por Luís Filipe Sebastião

a Os despistes mataram 169 pessoas no primeiro semestre do ano passado, dizem os dados da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR). Estes valores, que já contabilizam as mortes nos 30 dias seguintes à data do acidente, confirmam o agravamento da sinistralidade registada no ano passado nas estradas portuguesas.

A ANSR divulgou o relatório de vítimas mortais a 30 dias relativo aos primeiros seis meses de 2010. Neste balanço, que este ano começou a ser aplicado em Portugal, as vítimas mortais resultantes de despistes ultrapassaram as provocadas por colisão (163) e atropelamento (84). No período de Janeiro a Junho foram apuradas mais 89 mortes do que as apontadas no relatório provisório, que tinha apenas os números de mortes ocorridas no local do acidente ou no transporte para a unidade de saúde (a 24 horas). Ou seja, a meio do ano, as contas provisórias de 327 mortos subiram para 416. Como os dados reais são divulgados seis meses após as ocorrências, só em Julho será publicado o Relatório de Segurança Rodoviária de 2010, que permitirá tirar o retrato completo da sinistralidade rodoviária no país. Nessa altura, será actualizado o total provisório divulgado - 747 mortos. Mas este parcial por si só já representa um aumento de 1,4 por cento em relação a 2009, quando foram contabilizadas 737 vítimas mortais. Um cenário nada famoso, mesmo levando em conta uma redução de 45 feridos graves.

Mau resultado, diz ANSR

Os distritos com aumentos mais significativos de vítimas mortais, no balanço anual provisório, foram Porto, Faro e Portalegre. Pelo contrário, Santarém, Setúbal e Évora foram os distritos que se distinguiram na redução de mortos na estrada. Porém, este ranking deverá sofrer alterações, uma vez que os dados a 30 dias colocam Lisboa (com 71), Porto (54) e Aveiro (46) à frente nesta trágica corrida, ao passo que Beja, Guarda e Vila Real registaram os valores mais baixos.

O presidente da ANSR, Paulo Marques, reconhece que os números de 2010 são "um mau resultado", quando comparados com 2009, mas salienta que se situam abaixo de 2008 e que "a tendência decrescente que se tem vindo a sentir não foi quebrada". Na última década, a média diária de mortes e de feridos graves diminuiu para metade, embora muitas vítimas acabassem escondidas nas entrelinhas das estatísticas. Nesse aspecto, conforme admite o responsável do organismo tutelado pelo Ministério da Administração Interna, os registos do período a 30 dias vão permitir "um controlo muito mais fiável e real do fenómeno".

"O número de acidentes em meio urbano não está a descer tanto", reconhece Paulo Marques, quando olha para os dados da última década. Segundo a ANSR, entre 2000 e 2009, "cerca de 49 por cento dos acidentes com vítimas ocorreram em arruamentos, sendo que no mesmo período 43 por cento das vítimas mortais ocorreram nas estradas nacionais". Em termos globais, acrescenta o organismo, 71 por cento dos acidentes com vítimas deram-se dentro das localidades, onde se registaram 93 por cento dos atropelamentos. Este último valor traduz-se "em 66 por cento de vítimas mortais, dos quais 44 por cento são seniores".

Os peões mais idosos serão, por isso, o objecto da primeira das seis campanhas de segurança rodoviária a lançar este ano pela ANSR. Nas próximas semanas irá arrancar uma campanha de sensibilização, em parceria com a FECO-Associação de Cartoonistas. Luís Afonso, cartoonista do PÚBLICO, será o primeiro a apelar, através de mensagens humorísticas, à correcção dos comportamentos de risco que se saldam em muitos atropelamentos fatais.

"Grandes cidades matam"

"A bandeira dos números está esgotada", sustenta, por seu lado, Manuel João Ramos, da ACA-M (Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados), que há anos defende a alteração da forma de contagem das vítimas da sinistralidade rodoviária. "Existem mais cerca de 40 por cento de mortos de acidentes rodoviários nas estatísticas da Direcção-Geral de Saúde e do Instituto Nacional de Medicina Legal", nota este dirigente associativo, sublinhando que os relatórios da última década estão, nesse caso, muito afastados da realidade da "guerra civil" nas estradas portuguesas.

Manuel João Ramos mostra-se satisfeito com a alteração da contabilização das vítimas a 30 dias, apesar de recentemente a ACA-M ter revelado que lhe chegaram informações de que a contabilidade estava a ser feita "apenas a 14 dias" e não a um mês após o sinistro.

"As grandes cidades estão a matar muita gente", lamenta o responsável da ACA-M, que aponta o dedo aos elevados prejuízos sociais e económicos para o país decorrentes de cada vítima mortal na estrada, em particular dos jovens. "Mais de 35 por cento do número de feridos graves, no último ano, eram jovens em motorizadas", frisa Manuel João Ramos. E acrescenta: "As autarquias, em vez de promoverem a redução de velocidade em meio urbano, mostram-se apenas apostadas em facilitar a vida dos automobilistas." A solução passa por aumentar os tempos para atravessamento dos peões e na relocalização de muitas zonas de travessia. "Há localidades onde não há uma passadeira que esteja legal." Mas devia ir mais longe, remata, não com a criação de cidadãos que sejam bons condutores, mas com peões que sejam mais críticos.

"Sentimento de impunidade"

Nuno Salpico, do Observatório de Segurança de Estradas e Cidades (OSEC), partilha das dúvidas acerca da forma como estão a ser recolhidos os dados a 30 dias das vítimas mortais de acidentes rodoviários. "Só sabendo a real dimensão do problema é que se podem mobilizar meios", sustenta o magistrado deste organismo não governamental. "Parece-me que o sistema, em muitos casos, ainda não está verdadeiramente implantado, quando actualmente muitos não morrem no local, nem no mesmo dia, mas dias depois."

Embora sublinhe que a maioria dos automobilistas não adequa a condução às condições da via e do tráfego, Nuno Salpico entende que "o Estado tem obrigação de reduzir os factores de risco". Como? Através da realização de auditorias à rede viária, de forma a que as estradas cumpram os requisitos mínimos de segurança em termos de construção. Mas também na colocação das passagens para peões nos locais mais adequados. Ou ainda com o reforço da fiscalização da velocidade excessiva, pois "os radares em Lisboa cobrem apenas 1,2 quilómetros na extensão total da cidade".

Por outro lado, o dirigente da OSEC alerta para a necessidade de o Ministério Público cumprir a sua missão de responsabilização das entidades oficiais pela insegurança da rede viária. E entende que o Governo deve travar a prescrição, todos os anos, de milhares de autos de contra-ordenação, muitas vezes por infracções graves, devido a uma incapacidade para o seu processamento em tempo útil. "Existe um grande sentimento de impunidade."

Para o porta-voz da direcção nacional da PSP ainda é cedo para se retirarem conclusões acerca do aumento das vítimas mortais em 2010. O comissário Paulo Flor descarta que a subida possa ser relacionada com uma menor fiscalização, porque em termos operacionais as autoridades não abrandaram. Ainda assim, concede que as condições atmosféricas desfavoráveis do ano passado, conjugadas com a falta de cautelas dos automobilistas, possam ter contribuído para um acréscimo de sinistros. "Muitos conduzem a uma velocidade que não lhes permite evitar uma colisão ou um atropelamento."

A ANSR garante que a validação da morte a 30 dias está devidamente assegurada, através das forças de segurança, Ministério Público e instituições de saúde públicas e privadas. Paulo Marques argumenta que a entidade a que preside melhorou a eficácia do sistema contra-ordenacional, com notificações até cinco dias dos transgressores, e que os governos civis vão colaborar no sentido de as câmaras elaborarem os seus planos municipais de segurança rodoviária. Por fim, o responsável admite que os números não jogam a favor da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, mas adianta que vai ser feita uma "revisão intercalar", de forma "a manter a trajectória" do balanço que, apesar de tudo, considera positivo.

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