"Não há alteração de circunstâncias que levem o Tribunal Constitucional a mudar de posição"

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Miguel Manso

O antigo advogado do Tribunal de Justiça das Comunidades considera que o pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade do Orçamento feito esta semana por deputados do PS e do BE está condenado ao fracasso

Miguel Poiares Maduro, especialista em Direito da União Europeia e Estudo Comparado de Direito Constitucional e vencedor do prémio Gulbenkian Ciência em 2010, considera que os cortes nos subsídios de férias e de Natal no sector público têm um impacto grande, mas não suficiente para levar o Tribunal Constitucional a mudar de opinião face ao acórdão que, no ano passado, viabilizou os cortes nos salários dos funcionários públicos. O antigo advogado do Tribunal de Justiça das Comunidades e actual director do Instituto Universitário Europeu, em Florença, alerta ainda para os riscos da crescente judicialização das decisões políticas.

Alguns deputados do PS e o Bloco de Esquerda pediram ao Tribunal Constitucional (TC) a fiscalização sucessiva do Orçamento do Estado para 2012. Entre os argumentos está o facto de os cortes nos salários e nos subsídios de férias e Natal não serem medidas temporárias e ultrapassarem o limite do razoável. São argumentos suficientes para o TC mudar de opinião face ao ano passado?

As medidas em causa, embora configurando cortes mais profundos que os apreciados anteriormente pelo TC, não o são de tal forma que possam justificar uma alteração de posição. E não penso que o TC altere a sua interpretação da Constituição num tão curto espaço de tempo, atendendo à importância da estabilidade e coerência jurisprudenciais como pilares fundamentais da legitimidade judicial.

No que concerne ao carácter transitório, o anterior acórdão do TC relaciona-o claramente não com o carácter anual do orçamento, mas sim com uma conjuntura excepcional de crise económica e financeira. Esta crise permanece e, como tal, não me parece que exista qualquer alteração das circunstâncias identificadas pelo TC como relevantes. Além disso, o TC valorizou o carácter transitório das medidas, mas não o classificou como essencial para a sua admissibilidade constitucional.

Mas não se terá ultrapassado os limites do razoável?

No que respeita à dimensão da proporcionalidade, também não me parece que a diferença de grau, que existe, seja suficiente para justificar uma alteração do juízo de constitucionalidade. Há um impacto maior na remuneração das pessoas que trabalham no sistema público, mas não me parece relevante face aos critérios que o próprio TC definiu [no acórdão do ano passado].

Os tribunais em todo o mundo são muito prudentes neste tipo de apreciações, porque se a linha de fronteira que demarca a sua intervenção judicial não for muito clara terão de passar a intervir em quase todas as questões económica e socialmente controversas, e serão "enterrados" em contencioso. Praticamente toda a legislação tem um impacto diferenciado em diferentes grupos de cidadãos e, em muitos casos, com um impacto particularmente oneroso em certos cidadãos. Basta pensar na legislação que limita o que se pode construir numa propriedade, dependendo de onde se encontra e como é classificada pelo Estado.

Embora os tribunais tutelem os direitos em causa, incluindo através do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, eles só o podem fazer através de critérios que delimitem claramente a fronteira da sua intervenção. Desta forma, em quase todas as jurisdições constitucionais, esse tipo de inconstitucionalidade apenas é declarado em circunstâncias excepcionais quando o custo imposto nalguns cidadãos é tal que, na prática, os priva totalmente do direito em causa.

O simples facto de dizermos que uma determinada legislação tem um impacto mais profundo em determinados cidadãos não é suficiente para levar os tribunais a intervir. Só intervêm quando estamos numa situação semelhante a um confisco.

E não é esse o caso, portanto.

Não há uma diferença de grau em relação à situação anterior para me levar a pensar que o TC vai achar que é esse o caso.

O que isto nos ensina é que nem todas as questões que têm dimensão constitucional - e esta é uma questão com dimensão constitucional porque há uma questão de igualdade entre os cidadãos que está em causa - podem ser decididas pelo TC. Nem todo o discurso com relevância constitucional deve ser um discurso relativo à justiça constitucional. Acho que a questão ainda é sobretudo política.

Nos últimos anos, o TC tem sido chamado muitas vezes a intervir, ou pelo menos os apelos para que analise certas decisões são muito fortes. Por que é que acha que isso acontece?

Em Portugal, a determinada altura, os Presidentes deixaram de utilizar o veto político e, em vez disso, passaram a utilizar o mecanismo de fiscalização da constitucionalidade. Porque isso desdramatiza, do ponto de vista político, a decisão do Presidente relativamente à maioria política.

Assistimos a uma tendência crescente de tentar constitucionalizar no sentido de judicializar muitas questões porque o sistema político está quase incapaz de lidar com essas questões ou não quer incorrer nos custos políticos inerentes a esse debate político. É importante que a constitucionalização e a judicialização de certas questões não se transformem num mecanismo de desresponsabilização do sistema político, e nalgumas matérias isso está a ocorrer. Daí a necessidade de distinguir as questões que têm dimensão constitucional das questões que têm dimensão de justiça constitucional.

Há quem defenda que deve haver abertura para adaptar os princípios constitucionais a este contexto muito específico de crise? Partilha desta ideia?

Reformularia a questão: os princípios constitucionais só fazem sentido adaptados ao seu contexto. O Direito só é bem interpretado quando é adaptado/ interpretado de acordo com o contexto económico e social que vai mudando ao longo do tempo. As constituições mais duradouras e que conseguem ter um papel mais efectivo nas sociedades são aquelas cujos princípios constitucionais se vão adaptando à realidade política, social e económica. Nesse sentido, é a própria natureza dos princípios constitucionais enquanto princípios que têm uma ambição normativa temporal prolongada que vão mudando com o tempo. Por exemplo, houve momentos históricos em que o princípio da igualdade não incluía a igualdade entre homens e mulheres e que não incluía a proibição de discriminação em função da idade. Tudo isso foi evoluindo, muitas vezes sem se mudar a norma constitucional no seu sentido literal. O que é fundamental nos princípios constitucionais é o apelo a certos valores universais, que, por sua vez, só fazem sentido como uma interpretação que vai sendo actualizada à luz das mudanças que ocorrem no contexto económico, social em que o Direito intervém.

O exemplo que dá é uma evolução do sentido de alargar a protecção conferida pelo Direito. Neste momento, está a acontecer o inverso.

Sim, mas a maior parte das questões de Direito Constitucional não são questões de soma zero em que o Direito protege mais ou protege menos. Muitas das questões constitucionais trata-se de conflitos entre direitos, em que ambos os direitos ou valores em causa estão reflectidos na constituição. É óbvio que uma situação económica conjuntural como a que estamos a viver pode exigir uma certa adaptação das normas constitucionais que limita o seu alcance garantístico nalguma matéria. Mas isso é feito porque há outros valores que estão reflectidos na Constituição e que têm, por exemplo, a ver com a sustentabilidade do Estado, que têm que ser garantidos. Se não tivermos um estado sustentável em termos financeiros, outros valores constitucionais que devem ser protegidos podem ser colocados em causa.

Essa adaptação é sempre um produto da interacção desses valores constitucionais interpretados à luz do contexto actual.

E essa leitura não deve ter limites?

Tem de ter limites sempre. Uma norma jurídica não pode permitir todo o tipo de interpretações, tem que ter sempre limites. Muitas vezes, o que acontece é que esses limites não estão definidos ex ante . Resultam do processo de interacção entre essa norma jurídica e a realidade económica e social. Nem tudo é permitido na interpretação constitucional, tal como nem tudo está previamente definido.

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