Alguém pensou a sério no dia seguinte?

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Quisemos afastar o destino da Grécia. É esse, porventura, o destino inevitável que nos espera

1. "Mas aquela gente é louca. Nós, aqui, a fazer um esforço tremendo para encontrar uma solução que vá ao encontro daquilo que eles precisam e eles dão um tiro na cabeça". Desculpem a forma excessivamente coloquial com que começa esta crónica, mas imagino que deve ser mais ou menos isto que os nossos parceiros estarão a pensar de nós em Bruxelas ou em Berlim, onde quaisquer pormenores sobre o mau feitio do primeiro-ministro, as pressões internas sobre Passos Coelho ou as ambições de Paulo Portas são absolutamente irrelevantes. O que vêem é um país suicidário e sem rumo, que abriu uma crise política precisamente no único momento em que ela devia ser considerada impossível.

Nada disto impede que o nosso destino imediato se vá decidir nos próximos dias. Hoje, quando as linhas gerais do PEC forem chumbadas no Parlamento. Nos dois dias do Conselho Europeu de Bruxelas, onde o primeiro-ministro comparecerá (demissionário ou não) sem qualquer capacidade negocial. E, finalmente, no dia seguinte, quando já não for possível arrepiar caminho e as consequências se abaterem sobre nós. Ninguém pode antecipar as reacções dos mercados. Mas é difícil imaginar um quadro que fuja à subida das taxas de juro da dívida e à descida do rating da República. Com as consequências que se conhecem. E num momento em que o país tem de pedir emprestados até Junho mais de 10 mil milhões de euros, quando a banca só se consegue financiar junto do BCE e as empresas públicas não se conseguem financiar lá fora.

Para quem tem dificuldade, no meio da esquizofrenia política, em entender exactamente o que está em causa, vale a pena lembrar alguns factos.

2.A cimeira da zona euro, a 11 de Março, marcou um ponto de viragem para Portugal: com o aval do BCE e da Comissão, o Governo conseguiu convencer os parceiros europeus (leia-se a chanceler alemã) de que seria capaz de garantir as condições necessárias para dispensar no imediato uma ajuda externa nos moldes da Grécia e da Irlanda. Havia a outra face da moeda, igualmente importante. As novas condições de acesso ao fundo de socorro provisório, que foram negociadas nessa cimeira, seriam mais benignas, em caso de vir a ser inevitável um pedido de ajuda. Juros mais baixos e prazos maiores de amortização, possibilidade de compra da dívida primária. Era uma espécie de "dois em um" que nos convinha, quer para acalmar os mercados, quer para garantir dificuldades futuras. A moeda de troca foi a adopção do pacto para a competitividade (agora chamado de "pacto para o euro") e o compromisso firme dos países em dificuldades quanto ao cumprimento escrupuloso dos objectivos do défice (o famoso PEC IV).

Na segunda-feira passada, o Ecofin, reunido em Bruxelas, decidiu tudo sobre o fundo de estabilização definitivo, que entrará em vigor em 2013 (o chamado Mecanismo de Estabilização Europeu), mas não disse nada sobre as novas condições de acesso ao fundo provisório actualmente em vigor. Será o Conselho Europeu de quinta e sexta-feira a transformar essas condições em decisão vinculativa (o Conselho Europeu restrito à zona euro não tem essa capacidade formal) ligando algumas pontas que ainda ficaram soltas. Por exemplo, afastar os últimos obstáculos que os países do novíssimo clube que em Bruxelas se chama do "triplo A" (Alemanha, mas também Finlândia, Holanda, Áustria e, mesmo que a contragosto, a França) a aceitar os termos em que a ajuda aos países em dificuldades passará a decorrer a troco do compromisso dos países em dificuldades de fazerem a sua parte.

Não se sabe ainda como reagirão os nossos parceiros à nova condição em que o primeiro-ministro chega a Bruxelas nem em que medida isso afectará as negociações do Conselho Europeu. Mas uma coisa é certa: a crise política aberta pelo PSD anula, de um só passo, todo o esforço desenvolvido até agora. Não interessa se o PSD teve toda a razão em reagir à forma como o primeiro-ministro fez as coisas, abdicando do dever de informação e de negociação doméstica. Como já muita gente disse, a democracia é o regime da regra e nenhuma boa intenção justifica que as regras não sejam cumpridas. O facto não nos deve impedir de avaliar as consequências políticas desta crise e de reflectir sobre elas. Tínhamos ao nosso alcance uma bóia. Conseguimos o feito, verdadeiramente histórico, de optar por um naufrágio. Quisemos afastar o destino da Grécia. É esse, porventura, o destino inevitável que nos espera.

3. A segunda questão é a seguinte: não saberá o PSD tudo isto? O comportamento de Passos Coelho faz admitir que ele acredita que ainda há tempo para renegociar o PEC, que será possível negociar em melhores condições o inevitável recurso ao fundo, que lhe basta um comunicado garantindo o seu compromisso com as metas do défice para 2011 e para os dois anos seguintes para acalmar os mercados e tranquilizar os parceiros europeus enquanto esperam por uma clarificação eleitoral.

Não sei que garantias Pedro Passos Coelho obteve de Angela Merkel, que é sua correligionária no PPE, ou de Barroso, que é seu correligionário em Portugal. Permito-me apenas duvidar de que sejam suficientes. Não é assim que a União funcional - a jogar com os governos e com as oposições. A Europa funciona com Estados, apesar da cumplicidade entre famílias políticas. Nem me parece que a chanceler tenha negociado uma coisa com Sócrates ao mesmo tempo que aceitava dar garantias paralelas ao PSD.

Passos Coelho deve ao país uma clarificação urgente sobre todas estas interrogações. Tem de dizer o que pensa que vai acontecer no Conselho Europeu e como é que tenciona lidar com a situação. Não no médio prazo, que é o que corresponde às suas ideias sobre as reformas de que o país precisa para sair deste garrote financeiro e económico. Essas conseguem compreender-se. Mas no curto prazo, que por sinal é já amanhã. O dia seguinte ao Conselho, quando não conseguirmos honrar os compromissos da dívida e nos mandarem recorrer imediatamente ao fundo. Na versão a que tivermos direito. Provavelmente aquela que virá acoplada a um PEC bem mais duro.

Só haveria uma solução para evitar o pior: uma plataforma política alargada para sustentar este PEC, mesmo que a troco da realização de eleições num espaço de tempo adequado à situação que vivemos. Não há tempo para esperar que as próximas eleições a definam. Nessa altura já seremos a Grécia. E isso só é bom para aqueles que podem dar-se ao luxo de encarar as coisas do ponto de vista dos manuais: quanto mais depressa e com mais violência batermos no fundo, melhor. Para o comum dos mortais, resta o "apelo angustiado" de Mário Soares, exprimindo aquilo que a maioria de nós realmente sente. Jornalista

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