"Devolver ao Presidente a demissão do Governo parece feito à medida"

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Proposta do PSD "reforça a partidocracia" no sistema político, diz Alegre daniel rocha

Manuel Alegre assume-se como "o candidato da esquerda" às eleições presidenciais, mas não exclui a possibilidade de ter de dissolver um Parlamento maioritariamente de esquerda

Manuel Alegre arrasa a proposta de revisão constitucional do PSD: pelo timing, pelas propostas sociais e laborais, pela reforma do sistema político, que diz parecer feito à medida para o próximo Presidente derrubar o actual Governo.

É uma boa altura para se discutir a revisão constitucional?

Acho que não. São os partidos que decidem, mas estou de acordo com Jorge Sampaio e acho que não é a melhor altura. O país precisa é que se resolvam os problemas concretos dos portugueses, do emprego e do crescimento. Lançar um projecto nesta altura é um factor de perturbação e é mudar as regras para as presidenciais, a seis meses das eleições.

Vai assumir-se como o candidato da esquerda contra a revisão constitucional ou esta proposta do PSD?

Claro. Esta proposta [do PSD] subverte o sistema político institucional, é incongruente, cria uma trapalhada muito grande e é um ataque frontal ao Estado social - à escola pública, ao Serviço Nacional de Saúde, à segurança dos trabalhadores. Esvaziando os direitos sociais, inseparáveis dos direitos políticos, está a mutilar-se também a democracia. Por isso eu digo que esta é uma revisão não da Constituição, mas da democracia.

Mas acha justo que todos paguem por igual os serviços do SNS, independentemente das suas possibilidades?

É porque as pessoas pagam nos seus impostos. É aí que as pessoas pagam de forma diferente: quem tem mais paga mais, quem tem menos paga menos. Esse é que é um princípio republicano e democrático.

No sistema político, é contra ou a favor que o Presidente possa demitir o governo por falta de confiança política?

O Presidente da República pode sempre demitir o governo, para garantir o regular funcionamento das instituições. Mas retirar-lhe esta justificação é voltar há 35 anos atrás, a um modelo ultrapassado. E parece feito à medida para que o próximo Presidente possa demitir o actual Governo. É um foco de instabilidade política muito grande e pode inviabilizar a existência de governos minoritários. O que eu acho é que há uma grande incongruência, uma grande confusão. Por um lado, mete outra vez o Presidente onde ele não deve estar, nas questões do governo, mas, ao mesmo tempo, se houver uma moção de censura em que o Parlamento apresente um primeiro-ministro alternativo, o Presidente fica prisioneiro.

Não concorda com a chamada moção de censura construtiva?

Se, por um lado, há um reforço, por outro, há a perda do poder regulador do Presidente. E há um desequilíbrio do sistema político. Quem é que sai a ganhar? Não é nem a Assembleia, nem o Presidente: é a força maioritária ou a coligação de forças maioritárias. Isto reforça da pior maneira a partidocracia no sistema político português.

Acha que o processo de revisão tem condições para chegar a algum consenso?

O PS está unido contra esta proposta e eu fico muito contente com isso. Nestes termos, o processo de revisão não tem condições de ir a lado nenhum. Uma coisa é rever a Constituição, outra coisa é mudar de Constituição. Isto era mudar de regime. É, como disse alguém, tirar o povo da Constituição.

Se for eleito, o senhor pode ver-se perante uma situação de impasse político, por exemplo em caso de não aprovação de um Orçamento do Estado...

Os critérios de dissolução são determinados não por quem está a governar, mas por razões de interesse geral do país.

Admite enquanto Presidente poder ter que dissolver um Parlamento maioritariamente socialista?

Isso já aconteceu com o dr. Mário Soares, quando havia uma maioria de esquerda e, contra a vontade dos seus amigos, ele dissolveu e depois os resultados das eleições deram-lhe razão. Não vou antecipar cenários, nem vou assumir um compromisso dessa natureza. Um Presidente é independente, não está ao serviço de um partido, nem de uma coligação de partidos. Obviamente que tenho mais afinidade com o PS, mas um Presidente está ao serviço do país, e, uma vez eleito, está ao serviço de todos os portugueses. Aí, o que tem de prevalecer é o interesse geral do país. O que digo é que não serei instrumento de nenhum partido. Mas também espero que do outro lado ninguém se deixe instrumentalizar.

A questão é pertinente, porque o actual Governo não tem maioria e ainda tem três anos de mandato.

O Governo tem legitimidade para governar e a responsabilidade é do Governo e é de todos. E neste momento é necessário um diálogo entre todos os partidos. Não estou a dizer que deve haver bloco central ou acordos à esquerda. Tem de haver um esforço de todos, quer da parte do partido do Governo, quer da parte dos partidos da esquerda, da direita, e não só o PSD. Todos. E deve haver um diálogo muito forte com os parceiros sociais. A situação do país exige isso, e não é preciso soluções de carácter formal, de tipo coligações. Isso normalmente dá mau resultado. É preciso diálogo construtivo na busca de soluções que sirvam o interesse nacional. Seria muito mau, na situação em que está o país, que o Orçamento não passasse.

O senhor tem defendido que o PS devia procurar acordos à esquerda. Mas onde o Governo tem conseguido apoios é no PSD. A esquerda não colabora?

Deve haver um esforço muito grande da parte do Governo e da parte dos outros. Também da esquerda, dos que me apoiam e não apoiam, no sentido de se estabelecerem pontes. Porque há um cerco à democracia, um cerco que vem de fora - porque a direita europeia está a aproveitar a crise para pôr em causa o modelo social europeu e baixar os custos de produção - e de dentro, com propostas como esta revisão constitucional. Deve haver pontes à esquerda, mas não só: aqueles que têm uma visão solidária da vida, ou que se reclamam da doutrina social da Igreja, ou de princípios sociais-democratas, devem reflectir seriamente sobre esta situação. Caso contrário, podemos caminhar para situações explosivas, na Europa e em Portugal.

Quando está em campanha, consegue escrever poesia?

Há um grande poeta, o [William Butler] Yeats, que foi prémio Nobel e senador da República irlandesa, ele dizia que se pode fazer um discurso como quem faz um poema. Um verso pode acontecer sempre. Pode-se escrever poesia na boca de um canhão. Isso aconteceu-me em plena guerra. Mas estes períodos de campanha muito absorventes não deixam grande margem.

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