Mulheres e motos, Vespas e vestidos

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Publicidade à Casal Carina, 1965 Rui GaudÊnciO

Objectos de paz, colegas da emancipação da mulher, as scooters de A a V(espa) dialogam no Mude com moda dos anos 1940, 50 e 60

A scooter tem muito de feminino, na língua e na História - e seja ela uma Vespa, uma Lambretta, ou uma bem portuguesa Casal Carina. Aliás, a marca Sachs descrevia num folheto português de 1956: "É a scooter que em todos os pontos do mundo é exigida para senhoras, párocos e cavalheiros de qualquer classe." Párocos e senhoras - o que tinham em comum? As saias, senhores. João Seixas, o coleccionador cujo espólio alimenta a exposição Lá vai ela, formosa e segura, aponta o folheto como chave para deslindar a mostra que desde ontem está no Museu do Design e da Moda (Mude) - Vespas e vestidos.

Sessenta scooters de diferentes cilindradas e origens, das alemãs mais robustas e bélicas até às italianas mais hedonistas, passando pelas seminais francesas com raios nas rodas para lhes dar um je ne sais quoi de elegência. A acompanhar cada grupo de motorizadas nesta viagem está o new look de Christian Dior ou Hubert de Givenchy, calças e mini-saias Courrèges ou Mary Quant. São duas colecções em diálogo: a de Francisco Capelo, espólio do Mude, recheada de peças de moda, e a de João Seixas, espólio motorizado de que as scooters têm o sabor do fruto proibido.

É que a colecção de João Seixas nasce exactamente como "uma reacção a ter sido proibido pelo pai Seixas e pela mãe Elvira" a ter motos na adolescência, conta. Anos depois, está encantado por poder mostrar o seu enxame (embora haja muito mais do que Vespas da Piaggio - há sidecars e modelos raros), com vestidos e peças de design. É a primeira vez que as duas áreas se põem à conversa num museu, mas havia pistas há anos: "Desde o primeiro instante que todos os anúncios e fotografias, posters, etc., tinham mulheres a conduzi-las", recorda Bárbara Coutinho, directora do Mude. "A scooter é muito dirigida para o público feminino, desde o pára-brisas até ao facto de ser mais leve. E estamos muito mais sensíveis às linhas e à estética do que aos cavalos e potência da moto", sorri. Pedro Teotónio Pereira, conservador do Mude e comissário da parcela de moda da exposição, completa: antes, as mulheres andavam de moto "sentadas à amazona e de repente vão para o volante; é fácil de entrar nelas com as saias new look [a famosa colecção ditada pela Dior em 1947 que usava mais tecido e uma nova silhueta no pós-II Guerra]". E dá um exemplo (Vespa, claro): Férias em Roma, Hepburn e Gregory Peck ao volante.

Objectos de paz

Junto a cada grupo de motorizadas, organizadas por década e país de fabrico, estão peças de roupa, algumas das quais nunca mostradas pelo Mude. As calças Courrèges, as túnicas Pucci, as franjas de um Balmain. As scooters são a resposta da indústria "a uma chamada de um novo público, que se emancipa e que depois de sair de casa para as fábricas na II Guerra Mundial", anda pela cidade ou pelo campo, lembra Coutinho. Em Aveiro, a Casal Carina era muito usada pelas operárias no transporte entre a fábrica e a sua casa; já em Lisboa e na Linha do Estoril, a Vespa ou a Lambretta (que caiu em desgraça depois de conotada com os britânicos Mod e as associações aos skinheads) era muito usada pelas "meninas bem" para ir à praia.

Tudo isto no piso 1 do Mude, agora transformado por rampas pela mão do arquitecto Frederico Valsassina (também fã de scooters), em plena Baixa. Uma Baixa com os problemas clássicos de uma capital: o trânsito, o estacionamento, o ruído. Por isso mesmo, acrescenta a directora do Mude, "faz todo o sentido olhar outra vez para este veículo. São um exemplo do bom design, não só na associação de forma e função, mas também na inovação tecnológica e resposta a uma necessidade social. E são um objecto de paz". Hoje, depois de uma quebra no pós-1970 graças à massificação do carro (versão XL nas grandes marcas e cilindradas ou XS nos Mini e Fiat 600), a scooter regressa: há "novos modelos, a importância das motos vintage, designers como Philippe Starck a ser convidados a desenhá-las, o aumento da procura pelos jovens", elenca a responsável do Mude. E são antídotos contra "tráfego, poluição atmosférica e sonora, o custo do parqueamento dos carros, a velocidade de deslocação, [são garantes de] flexibilidade", completa.

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