A política europeia e o triunfo do nonsense

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Subitamente, o cenário político europeu parece ter aberto as portas ao triunfo do nonsense

1. Chama-se Beppe Grillo. É italiano, humorista e blogger. Há três anos criou um movimento político que designou por "geração cinco estrelas". Trata-se de uma formação política desprovida de estruturas, meios financeiros, chefia e sede. Enaltecem valores abstractos (honestidade, ecologia, transparência, participação cívica através da Internet), passam à margem de compromissos programáticos claros e limitam-se a enunciar propostas radicais, como a saída do euro. Atacam insidiosamente a política de rigor seguida pelo Governo de Mario Monti, aludindo sarcasticamente a um rigor montis por analogia com o rigor mortis dos cadáveres. Este quase inefável movimento político era, até ao fim-de-semana passado, uma hilariante e por vezes imaginativa força de contestação, mas no domingo realizaram-se eleições municipais em Itália. O movimento de Beppe Grillo obteve um resultado impressionante e ganhou a Câmara de Parma, uma cidade com 180 mil habitantes, capital da indústria alimentar transalpina. As sondagens indicam que se se realizassem hoje eleições legislativas, as listas de cidadãos partidariamente não comprometidos obteriam 12% dos votos e elegeriam à volta de 75 deputados no Parlamento nacional.

Na Grécia, uma formação política que se auto-apelida de esquerda radical está a caminho de se tornar no maior partido político do país, tendo como único projecto reconhecido a denúncia dos programas de austeridade que têm sido impostos à sociedade helénica. Na austera e disciplinada Alemanha, o Partido dos Piratas, constituído por essa nova fauna urbana que são os libertários da Net, tem vindo a obter bons resultados em sucessivas eleições estaduais, ameaçando chegar ao Parlamento Federal nas próximas eleições legislativas.

Subitamente, o cenário político europeu parece ter aberto as portas ao triunfo do nonsense. As categorias clássicas do pensamento político revelam-se ultrapassadas, as velhas dicotomias programáticas revelam-se impregnadas de uma insuportável vetustez doutrinária. Tudo parece radicalmente diferente. Estaremos perante uma avassaladora derrota do pensamento político contemporâneo? As nossas sociedades estarão finalmente a caminho de uma ordem pós-moderna, assente na desvalorização radical das grandes representações da modernidade? Teremos entrado num tempo definitivamente pós-iluminista?

É cedo para respondermos com carácter absoluto a essas questões e convém não perder de vista que permanecemos em grande parte subsidiários de conceitos políticos surgidos há mais de dois mil anos na Grécia Antiga. É preciso ter alguma prudência na interpretação dos acontecimentos recentes. Nessa óptica, será sensato nunca esquecer a lição fornecida por um membro do Comité Central do Partido Comunista Chinês a quem perguntaram, nos idos anos setenta, a sua opinião acerca das implicações históricas da Revolução francesa de 1789; a resposta não poderia ser mais sábia: "Seria precipitado retirar ilações definitivas sobre um acontecimento que ocorreu apenas há duzentos anos". Já nos anos setenta, os dirigentes do PC chinês, antes de serem comunistas, eram chineses, e este em concreto tinha provavelmente razão.

A recusa da precipitação não pode, contudo, conduzir à inacção crítica. O que hoje se passa na Europa é deveras preocupante - tal como com belos sentimentos não se faz boa literatura, também com a invocação simples de grandes valores abstractos não é certo que se produza política de qualidade. Bem pelo contrário. Beppe Grillo será um humorista talentoso, um blogger criativo, mas é altamente improvável que da sua intervenção política possa resultar seja o que for de verdadeiramente útil e inteligente. O que não quer dizer que esta nova realidade não deva ser objecto de uma reflexão profunda.

A ascensão destes movimentos revela a crise profunda da dimensão política enquanto espaço de confrontação de projectos alternativos. Quando na disputa partidária tradicional não parece haver lugar para a divergência, é natural que os eleitores busquem formas de representação alternativas independentemente da clarividência e viabilidade dos projectos que se propõem apoiar. Entre o desespero e o cinismo, a escolha revela-se muito limitada. Precisamos, por isso, em toda a Europa de reconstituir um campo de discussão política alicerçado num confronto claro entre projectos distintos providos de igual legitimidade e idêntica expectativa de exequibilidade prática. Se ao relativo esgotamento dos grandes sujeitos sociais tradicionais acrescentarmos a diluição de identidades filosófico-políticas clássicas, estaremos a abrir o caminho ao triunfo da irracionalidade que se apresentará com máscaras populistas diversas. E, nesse caso, a opção pelo humor é, apesar de tudo, preferível a qualquer outra. No riso, há sempre um tributo à liberdade e à inteligência. Beppe Grillo será sempre preferível a qualquer Marine Le Pen. Na vida política, o sarcasmo é sempre mais apetecível que o fanatismo.

2. A eleição de François Hollande trouxe uma nova esperança à França e à Europa. Desde logo, a expectativa de uma revalorização da esfera política. Voltou a falar-se de um outro projecto europeu, quer no plano institucional, quer no domínio económico e social. Hollande pretende mudar as coisas, seja por razões de princípio, seja por motivos de puro pragmatismo. Ainda bem que assim é. As boas soluções políticas, no fundo, resultam de um encontro feliz entre os valores e as circunstâncias.

3. Não me recordo de ter recaído sobre algum membro dos governos de José Sócrates a mais leve suspeita de pretender chantagear uma jornalista. Eram outros tempos. Os tempos da "claustrofobia democrática". Esperemos que o Parlamento faça o que se espera que um Parlamento decente faça numa democracia liberal madura.

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