O nome dele faz legião

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António Lobo Antunes fotografado em Lisboa, em 2009 Rui GaudÊncio

Esta é a semana que marca a consagração em França de António Lobo Antunes, com a tradução de O Meu Nome É Legião e o início de uma temporada de 50 espectáculos dedicados à sua obra. Por Pedro Rosa Mendes, em Paris

António Lobo Antunes tem uma dívida de gratidão para com a França, desde a guerra colonial em Angola e do dia longínquo em que chegou ao "mato" uma edição de bolso de La Legende des Siècles, de Victor Hugo. "Em África, às seis horas já é de noite. Éramos um capitão e quatro tenentes. Jantávamos às cinco e depois começávamos a ler em voz alta [os versos de Hugo]." Uma salvação "para cinco rapazes cegos que estavam ali para matar e serem mortos".

Em guerra e sob a ditadura portuguesa, foi de França que o jovem médico e oficial Lobo Antunes recebeu "um coeficiente de humanidade" em letras e crítica literária, como o escritor explicou ontem em Paris. "Victor Hugo salvou-nos da loucura e da crueldade e de todas as coisas ignóbeis."

Esta é a semana que marca a consagração francesa do autor, com a tradução de O Meu Nome É Legião - "Estamos com três livros de atraso", explicou Lobo Antunes, devido ao tempo que demorou a encontrar um novo tradutor à altura do seu estilo -, nas edições Christian Bourgois, e o início de uma temporada de 50 espectáculos dedicados à sua obra, ao longo de seis meses, algo inédito em França para um autor em vida.

"Coeficiente de humanidade" parece ser, hoje, o que Lobo Antunes devolve ao público francês, espécie de juro da "poesia e beleza" que ele próprio afirma ter recebido dos versos de Victor Hugo nos meses terríveis da guerra em Angola.

É uma relação de sedução e admiração a que Lobo Antunes estabeleceu com os seus leitores franceses, como ficou patente numa sessão intensa no palco principal da Feira do Livro de Paris, há menos de um ano. O escritor foi o único português convidado para a edição do 40.º aniversário do Salon. Perante um público rendido à sua cadência de candura, melancolia, ironia e brutalidade, Lobo Antunes explicou que "escrever e ler são uma forma de recusar a morte".

Ele diz: "Só sou António Lobo Antunes enquanto escrevo." E o público sorri. Ele diz: "Fui um cobarde, tinha medo da polícia política." E o público compreende. Ele diz: "Em guerra, todos perdemos." E o público comove-se. Como se comoveu e riu, disfarçando depois a comoção no riso, quando, na sessão fulminante da Feira do Livro, interrompeu sem cerimónias a leitura em palco de uma das suas cartas de Angola.

"Não é confortável para mim", explicou Lobo Antunes à jovem que lia uma carta de amor com 40 anos.

"Mas é você!", retorquiu a apresentadora.

Errado: não é. Lobo Antunes não é aquelas cartas, "porque não é o homem que aí está". Em literatura, explicou também, "o autor não tem nenhuma importância. É o livro que é importante". Citou Ovídio: "A minha obra sobreviverá ao tempo, ao fogo e ao ferro."

Explicando melhor ainda, disse o escritor com uma secura vitoriosa: "Essas cartas são de um jovem oficial que queria ser escritor para uma jovem mulher que queria ser mãe. Não tenho nada a ver com elas, não fui eu que as publiquei. Um livro é outra coisa! Isso é um vómito, uma angústia, o sofrimento da altura. Pensávamos que aquela guerra não ia acabar nunca."

"É o "psi" que fala ou o escritor?", perguntou ainda a apresentadora.

"O quê?"

"É o psiquiatra ou o escritor que fala?"

"É o homem!"

Aplausos.

"Uma humanidade doce"

"O que atrai o público francês é, antes de mais, essa língua magnífica, as estruturas envolventes da narrativa e, bem entendido, Portugal, um país do qual a França é muito próxima e que António tão bem descreve, quaisquer que sejam as classes sociais", diz Dominique Bourgois, editora de Lobo Antunes desde os anos 90.

"E, depois, é também o envolvimento político de António contra a guerra e a ditadura. E personagens femininas como um homem sabe descrevê-las. Uma empatia rara. E uma humanidade doce", acrescenta Dominique Bourgois.

"Lobo Antunes é um dos grandes, grandes escritores da literatura contemporânea. Não é apenas um escritor de Portugal", comentava o autor e encenador Georges Lavaudant no final da representação de estreia de Estado Civil, há uma semana, no Teatro MC93, em Bobigny, na periferia norte de Paris.

Lavaudant encenou Estado Civil com os actores da Escola Superior de Teatro de Montpellier, a partir de entrevistas de Lobo Antunes com a jornalista Maria Luisa Blanco do jornal El País. É um "poema dramático" pouco preocupado em criar situações teatrais e que, em vez disso, constrói em palco uma "ficção de biografia" de Lobo Antunes, "pela sua própria voz através da voz de um actor".

Uma das citações do escritor em Estado Civil é a de Lobo Antunes insistindo que a sua pessoa, afinal, nada interessa. Interessa apenas a sua escrita. "Um admirador de Sarah Bernhardt cruzou-se uma vez com ela numa rua de Paris e perguntou-lhe se era mesmo ela. E ela respondeu-lhe: "Serei Sarah Bernhardt logo à noite.""

Bobigny é a estação terminal da linha 5 do metro de Paris: digamos que é bastante longe do centro, dos salões mais conhecidos de discussão literária e dos palcos mais famosos da capital. O MC93 é, no entanto, um palco nobre da criação independente, por onde têm passado encenadores como Bob Wilson e Peter Sellars.

"Onde estamos? De onde olhamos o mundo? De Bobigny, olhamos da periferia e, com frequência, não olhamos", escreveu o actual director do teatro, Patrick Sommier, num texto lido na apresentação da tradução de O Meu Nome É Legião. Lobo Antunes impôs-se como a escolha natural de Patrick Sommier para um projecto que, a partir do gueto de Bobigny, pretende "dar visibilidade ao mundo", neste caso a partir de uma obra literária de 25 títulos traduzidos em França de onde é possível tirar "a substância da aprendizagem e uma visão do mundo".

Ontem, em Paris, António Lobo Antunes mostrou-se "surpreendido" e "agradecido" pela homenagem que está a receber em França. "Não sei explicar. É muito estranho." E acrescentou: "Todo o sucesso é um fracasso adiado." O escritor, que é anualmente dado como nobelizável, não sabe "onde vai parar este crescendo".

José Saramago, com quem Lobo Antunes partilhou as honras no Salon du Livre de 2000, dedicado nesse ano a Portugal, morreu em 2010. Como se comentava nos bastidores do MC93 após a estreia de Estado Civil, "António ficou ainda mais sozinho como um dos maiores escritores do mundo".

É outra, porém, a preocupação de Lobo Antunes, como confessou ontem à imprensa na embaixada de Portugal. "Tenho que parar com isto para escrever."Exclusivo PÚBLICO/Lusa

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