Corra atrás de nós... e entretanto coma alguma coisa

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Carlos Carvalheiro

Mais de 100 actores, peças com 200 representações, superproduções em monumentos nacionais, uma história com 30 anos. Não há muitos grupos de teatro amador como o Fatias de Cá. Teatro sem palco - e com comida.

Omais provável era que uma morte viesse interromper o nosso jantar.

Foi o que aconteceu.

Ainda há pouco tínhamos chegado à abadia e sido convidados para o enorme refeitório - onde agora se ouvia apenas o barulho das pedras a bater nos blocos de madeira enquanto todos nós, concentrados, partíamos as nozes que, com outros frutos secos, encontráramos sobre as mesas - quando um monge se lança na nossa direcção aos gritos. Precipitamo-nos todos para fora do refeitório e atravessamos em passo quase de corrida os longos e escuros corredores da abadia até à sala onde jaz o cadáver.

Há-de ser assim mais cinco vezes durante a noite - e de cada vez teremos de abandonar a refeição precipitadamente.

É assim há muito tempo - a peça O Nome da Rosa, adaptada do romance de Umberto Eco e representada pelo grupo de teatro amador Fatias de Cá - está prestes a cumprir as 200 representações no Convento de Cristo, em Tomar. Todos os domingos, às 17h17 minutos, os corredores do convento enchem-se de monges de severos hábitos cinzentos, entoando cânticos e transportando velas nas mãos.

Durante quase cinco horas, e enquanto vai escurecendo lá fora, o público corre atrás deles, de crime em crime, tentando perceber como morrem aqueles que vão sendo encontrados em vários pontos da abadia com as cabeças dos dedos manchadas de negro. A personagem principal, Guilherme de Baskerville, tem de investigar os crimes, mas discretamente, já que o ambiente na abadia é cada vez mais tenso, sobretudo a partir do momento em que chega o representante da Inquisição e tudo se prepara para um encontro - ou melhor, um choque - entre dominicanos e franciscanos.

Mas cinco horas é muito tempo, e, apesar de tudo, não estamos aqui para sofrer. Ao longo da noite havemos de ir seis vezes ao refeitório para continuar a nossa refeição, passando das nozes para pãezinhos de queijo, destes para uma canja, a seguir um arroz de frango, depois bolos e vinho quente com canela, e finalmente café e fatias de Tomar.

A comida faz parte da filosofia do Fatias. "Não resistir a uma ideia nova nem a um vinho velho", dizem. Em todas as peças se come. Será por isso, e porque é também o pretexto para visitar um monumento, que as pessoas vêm? O facto é que este grupo de teatro amador criado há 30 anos tem público, e não é pouco (muito público fiel, que volta várias vezes para ver o mesmo espectáculo, e que aproveita a ida para fazer um programa com amigos). A estrutura das peças, que obrigam o público a movimentar-se pelos espaços atrás dos actores, exige um número relativamente limitado de espectadores - cerca de 90 em O Nome da Rosa. Mas, já perto das 200 representações, o espectáculo continua sempre cheio (lamentavelmente, o público nem sempre se porta com a discrição e contenção que lhe é pedida).

Deixemos para já a abadia e mudemo-nos para o Palácio Sottomayor, na Figueira da Foz. Entregam-nos um passaporte que nos indica que acabámos de entrar no Il Vittoriale degli Italiani, em Gardone Riviera, Itália, e que somos hóspedes de Gabriele d"Annunzio, "il principe di Monte Nevoso". Estamos a 10 de Janeiro de 1927 e esta é a Itália fascista - se tivéssemos dúvidas sobre isso, elas dissipar-se-iam com a recepção que nos aguarda. O sinistro Aldo Finzi, ex-subsecretário de Estado de Mussolini, todo vestido de preto, de reluzentes botas negras e cara de poucos amigos, carimba cada um dos passaportes à entrada.

Está para chegar a pintora polaca Tamara de Lempika, que D"Annunzio convidou para que ela lhe pintasse o retrato. Mas a casa está cheia de gente, dos criados às amantes de D"Annunzio, e de intrigas. A história vai-se desenrolar nas várias divisões, nos salões dos senhores, em cima, às cozinhas e quartos dos empregados, em baixo, mas nós não a veremos toda. A cada cena o público tem de decidir que personagem quer seguir até à cena seguinte. Uns correm atrás dos criados pelas escadas abaixo, outros seguem D"Annunzio para assistirem a um monólogo no seu escritório, outros invadem um encontro amoroso num dos quartos entre dois dos hóspedes.

Há quem opte por seguir sempre a mesma personagem, há quem mude a cada cena. Nada é garantido, perderemos sempre qualquer coisa da história. Mas é por isso que a meio da peça nos encontramos para o jantar. E durante o esparguete à bolonhesa cada um contribui com os pedaços de informação que foi reunindo, na esperança de que o que se passou no quarto de Mário, o chauffeur de D"Annunzio, ajude a esclarecer a tragédia que ameaça os patrões no andar de cima.

A peça Tamara de Lempika já cumpriu as 200 representações e não dá sinais de estar para acabar.

Todas as semanas, os perto de 100 elementos dos Fatias com actividade permanente ou regular no grupo metem-se nos seus carros e percorrem o país - às sextas-feiras para a destilaria da Brogueira, onde apresentam Ricardo III, de Shakespeare, aos sábados para a Figueira da Foz, e aos domingos para o Convento de Cristo. Ou ainda, noutras alturas, para o Castelo de Almourol, onde apresentam Viriato, para a Quinta da Regaleira, em Sintra (O Anel Quebrado), ou para as Pegadas de Dinossáurios, em Ourém (As Pegadas dos Dragões). Vão os actores, e, claro, a comida, o único sector do grupo que se profissionalizou, criando a empresa Fatias de Cá Mãe, que fornece as refeições para todos os espectáculos.

Há muitos grupos de teatro amador em Portugal. Mas nenhum terá uma história como a do Fatias de Cá.

Teatro do espaço

"Foi com o T. de Lempika [que estreou pela primeira vez em 1998, no Convento de Cristo] que, para nós, se deu a grande ruptura com o teatro tradicional, sentado", conta Carlos Carvalheiro, actor, encenador e director do grupo (se bem que o Fatias não tenha uma estrutura tão tradicional, mas já lá vamos). Estamos sentados em frente a uma refeição (e poderia ser de outra maneira?), na cafetaria do Convento de Cristo, que desde o ano passado é também explorada pelo Fatias de Cá Mãe. "O teatro baseia-se normalmente na palavra, mas a partir daí nós dizemos que o teatro se baseia no espaço. É o espaço que comanda o fenómeno da comunicação. Aqui há um mecanismo de grande atrevimento, que é a gente experimentar coisas novas, arriscar, ver como vai ser. E esse atrevimento permite estar sempre a tentar novos caminhos, inclusivamente fazer teatro num palco", diz com uma gargalhada. "Até arranjámos peças para palco, mas não conseguimos ter muitos palcos disponíveis. Tornou-se muito mais fácil descobrir sítios espectaculares sem ser em teatros. Porque o cenário já está feito."

No início, esta opção não surgiu por razões filosóficas. Foi mesmo por necessidade. "Em 79, quando o Fatias nasceu, Tomar era uma cidade muito fechada culturalmente. Tinha um conceito muito feudal, com ricos muito ricos e uma pequena burguesia de comerciantes extremamente conservadora." Havia, no entanto, um pequeno grupo com vontade de fazer alguma coisa diferente. E, no meio da desconfiança geral, organizaram uma primeira noite cultural. Chamaram-lhe Fatias de Cá por causa das fatias de Tomar. "Foi muito contestado no princípio, na altura associava-se cultura a comunistas e as pessoas tinham um medo horroroso dos comunistas."

Tinham passado apenas "cinco aninhos do 25 de Abril" e o Fatias não tinha a vida facilitada. "O grupo faz um percurso de três anos em que está abandonado na cidade e é tratado quase como uma organização de malfeitores que anda aí a querer fazer teatro." Não tinham espaços para apresentar os espectáculos e foi então que, pela primeira vez, usaram o Convento de Cristo. Não se assustavam com nada: Carlos Carvalheiro encenava Gil Vicente, Shakespeare, Marguerite Yourcenar.

"Sujeitávamo-nos sempre ao que havia. Se não tínhamos teatro, inventávamos forma de o fazer onde não era costume. Como não tínhamos luz, tínhamos de fazer de dia e então arranjávamos maneira de ser agradável porque se podia comer qualquer coisa. Havia sempre momentos de encontro com o público, em que oferecíamos uma bebida, um aperitivo, fatias de Tomar."

As coisas começaram a mudar quando, em meados dos anos 80, decidiram fazer A Crónica dos Bons Malandros, de Mário Zambujal, e convidaram outros grupos de teatro amadores. Montaram uma peça com mais 20 grupos. "Foi uma orgia de teatro", recorda Carlos. Conseguiram, com fundos europeus, criar um curso de animadores e pensaram tornar-se profissionais. Mas decidiram não ir por aí ainda. "Os professores faziam formação e o dinheiro que ganhavam ia para uma conta que servia para pagar viagens a festivais internacionais", onde levavam a peça Homlet, uma paródia a Hamlet de Shakespeare.

As ideias multiplicavam-se. Queriam fazer teatro com grupos de outros países, sonhavam com um centro cultural perto do rio Nabão ("ficou em águas de bacalhau"), planeavam fazer a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, com grupos de teatro chineses, japoneses, turcos. "Nós fazíamos de portugueses, os japoneses de japoneses. Havia o problema da língua? Pois com certeza, mas eles na altura também tiveram e arranjaram tradutores."

Fizeram peças no rio Tejo, com o "Japão" de um lado e "Portugal" do outro (Tanegashima), e com Marrocos no tempo de D. Sebastião - de um lado a corte portuguesa, do outro a marroquina, e o público a passar de um para o outro para assistir à batalha (Alcácer-Quibir). Planearam um grande projecto internacional em que contavam a Odisseia nas próprias terras por onde Ulisses passou, em co-produções com grupos locais. "Chegámos a fazer um cruzeiro e tudo."

Sofreram crises e estiveram para acabar ("temos vivido sempre por ciclos de três anos e meio, mais ou menos", diz o encenador). Mas foram crescendo: do grupo inicial de seis ou sete pessoas passaram para perto de 100 membros permanentes e outros 100 que ajudam pontualmente em alguns projectos (em Viriato, por exemplo, que envolve cavalos e motas, são precisos dezenas de ajudantes).

Continuaram a discutir se se deviam profissionalizar (e continuaram a adiar a decisão). Dividiram-se em células autónomas, mas mantêm uma estrutura - "um pouco maçónica", reconhece Carlos, "mas não era essa a intenção" - em que há níveis, de um a sete, sendo o nível um o dos que têm menos responsabilidades, e o sete o dos que têm mais. "Ainda ninguém chegou ao sete, não se sabe bem o que é. O seis sou eu, e há um conjunto de pessoas de nível cinco, que dirigem equipas."

Concorreram a subsídios, mas só uma vez receberam (para o T. de Lempika) e sobre isso Carlos Carvalheiro tem ideias muito claras. "Houve uma espécie de bloqueio e o Fatias nunca mais recebeu nenhum subsídio. Está tudo eivado de um determinado conceito do que é o teatro. E o Fatias foi achincalhado durante muito tempo por dar comida nos seus espectáculos. Diziam que era teatro comestível. E agora vamos lá falar de receptividade dos públicos. As outras companhias têm uma relativa dificuldade de atracção de públicos, e o Fatias não. Isto que estou a dizer é muito desagradável porque é a atitude típica do arrogante que se põe de fora de tudo e diz que os outros estão errados e que ele é que está certo. É normalmente assim que as coisas são entendidas. Quando, na verdade, a vítima da incompreensão é exactamente o Fatias de Cá."

Uma morte ao jantar

Sem subsídios, fazem contas. O Nome da Rosa, em 2009, deu 70 mil euros de bilheteira (os bilhetes são a 30 euros, incluindo as refeições), e as despesas foram de 80 mil. Metade do prejuízo é dividido pelos próprios actores e colaboradores, que abdicam, por exemplo, de receber a gasolina das deslocações. "Temos meia dúzia de pessoas que são de âmbito profissional. Se houver lucro, o dinheiro é dessas pessoas. Como não há, dividimos [os prejuízos]."

São estas pessoas (estes "maduros", diria provavelmente Carlos) que no início da tarde de um domingo de Março começam a chegar ao Convento de Cristo para o briefing que antecede o espectáculo. Numa sala escura do convento, discutem os assuntos do dia: quem transporta as luzes, os dominicanos ou os franciscanos? Quem arranja os livros que estão presos entre si e caem todos ao mesmo tempo quando se puxa por um? O que responder a uma proposta de uma empresa para um espectáculo extra?

Este é também "o único momento do dia válido para se conversar e fazer todas as críticas", para evitar má-língua nos bastidores. Mas, se o espectáculo tiver sido um desastre, "a culpa é sempre do encenador", garante Carlos. E as críticas "nunca vão no sentido de as pessoas estarem a fazer mal". Não é isso o mais importante. "É mais valioso ter a pessoa aqui, mesmo que esteja a fazer mal, do que essa pessoa sentir que não tem aqui lugar porque não presta para fazer teatro."

O briefing está a acabar. São quase cinco da tarde. Distribuídas as tarefas, cada um sai para se arranjar. Os actores principais vestem as roupas respectivas, os outros, chamados "cinzentos", vestem as túnicas cinzentas com que vão servir às mesas e orientar o público nos corredores do convento. Em salas improvisadas como camarins, dão um último ponto numa peça que se estava a descoser e maquilham-se a si próprios. A um quilómetro dali, na cozinha do grupo, prepara-se já a canja, o arroz de frango, os bolos, que são depois trazidos quentes à hora das refeições.

Tudo está a postos. Guilherme de Baskerville e o seu ajudante, o jovem Adso, estão quase a chegar à abadia. Há um assassínio a investigar. E haverá mais crimes.

O mais provável é que uma morte venha interromper o nosso jantar. a

apc@publico.pt

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