Uma nova vitória de Franco?

O juiz Baltazar Garzón foi capaz de meter mais de mil etarras na prisão, ajudou a acabar com o extremismo dos GAL e teve até liberdade de iniciativa para mandar prender Augusto Pinochet. A sua carreira na magistratura está, no entanto, em causa. Acusado do crime de prevaricação, pode ser afastado do sistema judicial. Por erros judiciais graves? Por crimes venais? Não. Garzón está no banco dos réus apenas porque se julgou competente para investigar o destino de dezenas de milhares de espanhóis desaparecidos na noite do terror franquista; Garzón vai a julgamento porque a Espanha continua sem liquidar o fantasma do franquismo; ou, por outras palavras, porque o franquismo continua a dispor do privilégio da inimputabilidade, da ajuda de uma Igreja ultramontana e da influência que sectores conservadores do poder judicial, mediático e político lhe concedem. O momento que divide a Espanha e suscita um coro de protesto em todo o mundo justifica-se porque o caso Garzón simboliza o provável triunfo da Falange e de outras associações franquistas.

A aceitação do caso das vítimas do franquismo não pode ser vista como um gesto imprudente destinado a reabrir feridas; pelo contrário, é uma iniciativa destinada a sarar de vez a raiva e a sensação de injustiça. Em outras democracias, essa reparação de danos e a procura da verdade fez-se com maior ou menor sofrimento. A Itália ou a Alemanha fizeram-no e o Chile ou a Argentina tiveram a coragem de revogar as suas leis de amnistia para julgar as atrocidades das suas ditaduras. Mas não a Espanha, que continua a ter o nome e estátuas do ditador nas suas praças e quartéis militares. Décadas de democracia não foram ainda suficientes para o país afastar de vez o fantasma do carlismo e da extrema-direita que se erguem periodicamente para impor a sua lei. Querer saber o que aconteceu aos milhares de "vermelhos" que foram retirados de suas casas sob o pretexto de darem un paseo, foram executados sumariamente e acabaram sepultados em valas comuns é um crime que essa Espanha ressabiada e retrógrada continua a não tolerar.

Encarar este braço-de-ferro como uma querela legal faz, por isso, pouco sentido. É verdade que a Lei da Amnistia impede a investigação de crimes políticos do franquismo. Mas também é verdade que a Espanha ratificou todos os tratados internacionais que consideram imprescritíveis os crimes contra a humanidade. E Garzón prometeu apenas uma investigação enquadrável no "marco jurídico internacional ao qual a Espanha pertence". E se não há dúvidas que tanto os republicanos como os franquistas foram responsáveis por crimes contra a humanidade, como a moderna historiografia espanhola mostra, subsiste nesta relação uma incómoda diferença: as vítimas do lado das hostes franquistas tiveram funerais decentes e até homenagens glorificadoras, como a do Vale dos Caídos, perto de Madrid; pelo contrário, os "vermelhos" continuam "desaparecidos" em valas comuns.

Garzón reconheceu depressa que o processo tinha limitações. Nunca poderia julgar ou condenar Franco e os 34 generais envolvidos no "plano de extermínio" dos "vermelhos". Pediu as suas certidões de óbito e remeteu os processos para outras instâncias. Mas a desistência não bastava. Tinha de ser punido. Associações extremistas moveram-lhe um processo e um juiz nacionalista no Supremo, Adolfo Prego, aceitou-o. Tudo o resto se resume a formalismos e ao perigo de a Espanha estar a ser empurrada para um dos vértices do seu doloroso destino.

Há, porém, quem não esteja disposto a aceitar a fatalidade. Como se podia ler num editorial do El País, aos que "acusam Garzón de montar um espectáculo à custa da reabertura de velhas feridas cabe recordar um princípio de qualquer democracia: nenhum Estado pode apagar os seus próprios crimes". Cidadãos e organizações protestam. Se o juiz for punido, a Espanha democrática perderá e o caudillo e os seus verdugos acumularão uma nova vitória. Apesar de todo o relativismo e do calculismo que recomenda prudência com o passado, esta é a única lição possível, se Garzón for afastado dos tribunais.

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