Eles vivem a serra e o mar

A paz e o silêncio

Há sempre um momento especial no dia de Pedro Tamen: os instantes em que se senta no banquinho de pedra que mandou colocar no canto favorito do jardim da sua casa. Está protegido por um arbusto e abre para uma paisagem em que o poeta e tradutor vê "um quadro da escola toscana". Sentar-se ali, a ouvir o silêncio e a lavar os olhos naquele verde eterno, mas sempre diferente, é um ritual. Dir-se-ia de purificação.

Neste vale encravado entre as fragas rochosas da serra de São Luís e o contorno marcado a moinhos de vento da serra do Louro, Pedro Tamen encontrou paz e silêncio, tal como sempre sonhara. A estrada de terra batida tem pouco movimento - um ou outro carro e alguns praticantes de BTT, que irritam solenemente o pequeno cachorro que ladra do lado de dentro do portão. "O Moisés odeia ciclistas..."

A ideia já existia há muito, mas só há cerca de 20 anos surgiu a oportunidade de comprar o terreno, com uma edificação em ruínas que permitiu construir uma casa no local. Até se reformar, o que aconteceu em 2000, Pedro Tamen utilizou-a como casa de fim-de-semana. Nessa altura, foi assaltada três vezes. "Agora que está habitada e tenho alarme, perguntam-me se não tenho medo de estar para aqui sozinho e a minha resposta é: nem penso nisso!"

Habituou-se a ver pássaros, aves de rapina - "há aqui uma águia residente, o que me alegra muito, visto que sou do Benfica" - e plantas espontâneas que enchem o ar de odores sempre especiais. "Orégãos, folhado, alfazema", enuncia, enquanto rodeia a casa cercada de verde. E sempre o silêncio e a paisagem. Há séculos que este feitiço inspira a oração e a poesia. Continua a resultar: "Tudo depende mais de nós do que do que está à volta, mas este convite à contemplação ajuda muito."

Até quanto se pode gostar de uma serra?

É preciso esperar alguns minutos ao longo da conversa, mas, depois dos esclarecimentos mais científicos e das considerações políticas que a sua função carrega, depressa se percebe como a paixão de Isabel Santos pela Arrábida a coloca perante um dilema. Natural de Setúbal, onde habita, ela adora a serra desde pequena e foi essa paixão que a levou a ser o que é. Mas agora a profissão meteu-se no caminho. "Aos fins-de-semana, tento não ir para a Arrábida, porque levo os problemas do trabalho comigo", assume a engenheira florestal. Torna-se difícil passear por ali sem tropeçar naquela vala que foi feita sem autorização, na casa que era um rés-do-chão e que já tem 1.º andar, na estrada de terra batida que aparece alcatroada, no terreno baldio onde, de repente, aparecem pés de vinha. "Somos poucos técnicos, todos conhecemos os processos, lembramo-nos deles quando vemos as coisas..."

E o seu trabalho é exactamente esse: zelar para que as regras que existem no papel funcionem na prática. "Isto implica articular com diversas entidades e sensibilizar as pessoas." Nem sempre é um trabalho gratificante. "Gostava que fosse menos conflituoso", desabafa Isabel. "Gostava de trabalhar mais com a Natureza do que com as pessoas... Só que um parque natural vive também do equilíbrio com a utilização humana, é isso que lhe dá alma."

Em algumas zonas, a actividade humana é agora completamente interdita. Noutras, a acção do homem ajuda a preservar o meio ambiente (a pastorícia, por exemplo, impede que certas zonas de prado se transformem em mato cerrado, mantendo áreas de caça para as aves de rapina). Mas a acção humana só é positiva se as regras forem cumpridas. Num parque em que 95 por cento da área é propriedade de privados, isto pode implicar muitos choques. E é essa tensão que está a afastar Isabel da serra... É um dilema doloroso, mas, por enquanto, ainda não irresolúvel. "Ainda consigo fruir a Arrábida. É cada vez mais difícil, mas ainda consigo. O contraste azul/verde é sempre espectacular. Há, por exemplo, a casa de uma pessoa amiga, já com 95 anos, onde vou há muito tempo e é sempre como se fosse a primeira... A paisagem nunca é igual! E acontece noutros sítios..."

Viver nas entranhas

Jorge Leandro tenta contar como se instalou no sítio que habita há 20 anos, mas a memória atraiçoa-o. Não a de longo prazo, como a sucessão de acontecimentos que o levaram a tornar-se um eremita às portas de Sesimbra, a viver numa gruta.

A entrada fica junto à estrada, em plano elevado, com vista para o mar e para a serra. A estranha visão de uma rampa acimentada que leva a um amontoado de móveis e utensílios domésticos assalta-nos ao descrevermos uma curva.

Jorge, "da Gruta", como é conhecido na zona, habituou-se há muito a viver nas entranhas da serra. "Gosto de viver aqui, não quero uma casa. Não trabalho para ninguém, não tenho de dar satisfações a ninguém. Quando me chateiam, fecho-me no buraco."

As rotinas são simples. "Pouco saio, só vou ao mato buscar lenha, de resto fico por aqui." Deita-se cedo e preocupa-se em não dar muito nas vistas à noite, mas nem assim se safou de ser assaltado. "Levaram-me 20 contos, "tás a ver? [Jorge trata toda a gente por tu e não quer saber de euros] Eram gajos de cá. Vêem-me aí com o carro carregado e põem-se logo a cobiçar..." O "carro" é um carrinho de mão que Jorge utiliza quando vai às compras. Item indispensável: ração para os gatos, que "não querem arroz, nem massa".

Jorge despede-se dos repórteres ao fundo da rampa para o seu buraco, que "tem 30 metros de fundo" e "onde cabe muita coisa". Há aqui um tapete, como à porta de qualquer casa, plantas que o morador cuida - "Gosto muito de plantas." Disso e de aparecer em reportagens dos jornais. Para a televisão já perdeu a paciência, mas guarda os recortes da imprensa com dedicação. Só para ver. "Se eu soubesse ler, era um gajo inteligente..."

Acima e abaixo da linha de água

Haverá muita gente com capacidade para falar dos encantos e segredos da Arrábida, mas poucos poderão fazê-lo de forma tão completa como Miguel Henriques, de 41 anos, biólogo marítimo e técnico do parque natural. Porque ele passou boa parte da sua vida onde a maior parte dos outros nunca esteve: debaixo de água. "Já fiz centenas de milhares de mergulhos na zona, quase todos por motivos profissionais", explica.

De tanto conhecer a zona, Miguel até já procura outros sítios para mergulhar nos tempos livres. Quando não está debaixo de água, vai para a Arrábida. Para a parte seca, claro. Uma coisa tem tudo a ver com a outra, garante.

Quando começou a trabalhar no parque, em 1991, a missão de Miguel era recolher informação e fazer um levantamento de dados que ajudassem a alargar a área de protecção para as águas costeiras da serra. Foi o que sucedeu em 1998. "Acho que esse objectivo é um sucesso, esta é uma área riquíssima, na fronteira entre as espécies de água fria e de água quente e com um habitat complexo que suporta uma enorme variedade de fauna."

Isto nem sequer é novidade. Quando o rei D. Carlos, ainda no século XIX, se lançou no seu hobby da oceanografia biológica, começou exactamente pelos mares de Sesimbra. Miguel, nascido em Lisboa e morador em Cabanas, nos limites do parque, pegou em tudo o que já se sabia e empenhou-se em enriquecer essa informação. Havia muito por onde pegar: "Em termos biológicos, esta é a zona do país mais rica em fauna marítima e está a par das mais ricas da Europa."

Miguel tem tanto para dizer e explicar sobre a vida subaquática que se torna difícil tirar o biólogo do caminho para chegar à pessoa. Mas há sempre uma altura em que as coisas se tornam pessoais. E basta uma pergunta para quebrar a película profissional. O que gosta mais na Arrábida? Sem surpresa, a resposta chega em tons mais emocionais: "É a diversidade, o contraste de paisagens, as cores, a ligação perfeita de duas coisas aparentemente tão díspares como a serra e o mar." Só há uma Arrábida, acima ou abaixo do nível do mar.

Valorizar um diamante cada vez mais baço

As primeiras actividades de ar livre de que se lembra na Arrábida ainda foram feitas nos tempos da Mocidade Portuguesa. António Lopes, de 49 anos, carteiro de profissão e instrutor de montanhismo por paixão, nasceu em Setúbal e a montanha vizinha sempre esteve no seu horizonte. "Percursos pedestres, escalada, orientação, fiz de tudo, depois também nos escuteiros e, desde 1986, no Clube de Montanhismo na Arrábida." Uma longa experiência que sustenta a sua conclusão: "É preciso uma carta desportiva para se poder valorizar a serra como destino turístico."

António tem uma licenciatura em Desporto e uma especialização em Turismo. Não admira, por isso, que às vezes o seu discurso seja marcadamente político, para vincar reivindicações e apontar estratégias de desenvolvimento. Garante que o seu clube, onde é vice-presidente, realiza poucas acções na área do parque natural porque as proibições são excessivas. "Ficamos melindrados com a proibição de acesso a algumas áreas, porque as pessoas que praticam estes desportos estão sensibilizadas para a conservação ambiental. Este é o nosso estádio, temos de o preservar!"

Durante um encontro de clubes de montanha, um dirigente espanhol disse-lhe que eles tinham ali "um diamante por lapidar", mas o diamante, em seu entender, está cada vez mais baço. "Há demasiadas restrições. A Arrábida tem um potencial imenso para recuperar de agressões. Houve um fogo enorme há uns anos e já nem se nota nada... Comparado com isso, ter lá gente a andar não é nada."

Ou seja: "Património da Humanidade só faz sentido se for para as pessoas. Caso contrário, é uma contradição."

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