Um busto e um hino consensuais - e uma bandeira polémica

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Columbano (mais à esq.) e a Comissão encarregada de aprovar a nova bandeira IMAGENS: HISTÓRIA DE PORTUGAL/COORDENAÇÃO JOÃO MEDINA/EDICLUBE

Uma jovem empregada de uma loja do Chiado serviu de modelo à república. Um hino contra os ingleses foi unanimemente escolhido. Só as cores da bandeira agitaram os ânimos. Mas os defensores da verde-rubra acabaram por vencer. Por Alexandra Prado Coelho

Um rei tem um corpo. E isso ajuda muito.

"Quando os republicanos começaram a fazer a sua propaganda, a partir de finais do século XIX e sobretudo durante os primeiros dez anos do século XX, confrontaram-se com um problema: como representar a república?", explica o historiador Nuno Severiano Teixeira. "Na monarquia o rei tem um corpo físico e portanto é uma pessoa reconhecível e reconhecida pelos cidadãos. Mas a república é uma ideia abstracta."

Na altura a grande maioria da população era analfabeta - e fazer passar uma ideia abstracta não era coisa fácil. Foi preciso criar símbolos: uma imagem da república, uma nova bandeira nacional, um novo hino. Mas em 1910 os republicanos não começaram do zero. Estava "em mau estado" o busto da república que António Valdemar foi descobrir numa arrecadação da Academia Nacional de Belas-Artes, quando se tornou presidente da instituição. Valdemar pediu ao escultor João Duarte que o restaurasse e o rosto de Ilda Pulga, a jovem que na época trabalhava numa loja do Chiado e que inspirou Simões de Almeida Sobrinho a criar uma imagem da república, voltou a surgir tal como fora esculpido em 1908 (com o célebre barrete frígio, uma influência da Revolução Francesa, e que nada tem a ver com Portugal).

Ainda havia monarquia no país, mas já o avanço da república parecia imparável. As eleições tinham permitido aos republicanos conquistar a Câmara de Lisboa, e foi nessa altura que o primeiro busto da república foi encomendado a Simões de Almeida Sobrinho. "O Simões achou piada à cara da rapariga e convidou-a para ser modelo", conta Valdemar. "A mãe disse que autorizava mas com duas condições: que ela própria estivesse presente nas sessões e que a filha não se despisse."

Este primeiro busto começa a generalizar-se. É adoptado pela Maçonaria. "Nessa altura ainda não tinha havido concurso", sublinha o presidente da Academia. Mas no livro A Revolução Portuguesa, de Machado Santos (que ficaria conhecido como "o herói da Rotunda" pela forma como resistiu na Rotunda, quando muitos dirigentes republicanos desistiam, achando que a revolução tinha falhado), há uma imagem que mostra uma das cópias do busto a dominar uma sala da sede da Maçonaria.

"Foi preciso dar um corpo à república e a ideia, como aconteceu noutros países - o caso da república francesa é paradigmático -, foi dar-lhe a imagem de uma mulher", afirma Severiano Teixeira, que tem estudado a simbólica da república. "Mas, ao contrário dos franceses, que vão actualizando progressivamente o busto com figuras conhecidas da vida pública, da cultura, em Portugal o busto permanece o mesmo desde 1908." O facto de os franceses participarem, votando, na escolha da personalidade que vai representar a república, cria, acredita o historiador, "uma relação de maior proximidade do que um busto que foi escolhido no início do século, de uma pessoa que poucos sabem quem foi".

Mas na altura, em 1910, para formalizar a coisa, os dirigentes republicanos decidiram lançar um concurso. E, apesar da popularidade do busto que fizera ("nos funerais de Miguel Bombarda e Cândido dos Reis, na câmara municipal, ele aparece em lugar de destaque", lembra Valdemar), Simões de Almeida Sobrinho fica apenas em segundo lugar. O vencedor é Francisco dos Santos. E surge assim o segundo busto da república portuguesa que acabaria por conviver com o primeiro (e mais popular) ao longo dos tempos.

Hino patriótico

Bastante mais simples foi a escolha do hino - não houve qualquer oposição à ideia de adoptar A Portuguesa. E assim Portugal ficou até hoje com um hino que começou por ser um desafio popular a Inglaterra. Conta Severiano Teixeira: "É um hino patriótico, que não surge no contexto republicano, mas sim no do Ultimato inglês." Recuamos aos anos finais da monarquia, quando a oposição britânica à ideia de Portugal unir os seus territórios em África (o célebre Mapa Cor-de-Rosa) faz desencadear um movimento popular contra os ingleses. "Alfredo Keil compõe a canção, vai a casa do [Henrique] Lopes de Mendonça e diz-lhe que já tem um hino feito, mas que precisa de uma letra. Toca-lhe os acordes da Portuguesa, e Lopes de Mendonça cria a letra." Os dois fizeram 12 mil exemplares da partitura e distribuíram-nos. Estávamos em 1890.

A partir daí a música ganha vida própria. "É tocada pela primeira vez num teatro, durante uma peça. No início é basicamente um hino patriótico e nacionalista, mas a pouco e pouco vai sendo apropriado pelos republicanos. A certa altura o Governo [empenhado em não agravar a questão com os ingleses] proíbe-o, e isso reforça a sua legitimidade nacional. Quando surge o 5 de Outubro, era quase natural que o hino fosse A Portuguesa."

Só o novo significado (de resistência à monarquia) que a música entretanto conquistara justifica que se continuasse a cantar "Às armas, às armas!/Pela Pátria lutar!", quando a questão com a Inglaterra já estava ultrapassada.

A discussão das cores

Verdadeiramente polémica foi a escolha da bandeira. Aí, sim, os ânimos exaltaram-se e as opiniões dividiram-se. Apareceram dezenas de projectos, de ideias, de sugestões. "Quando se dá a implantação da república, uma das questões imediatas é a da bandeira", refere Severiano Teixeira. "A opção era entre a azul e branca, que vinha da monarquia, mas sem a coroa, ou a transformação de uma bandeira que já era a dos republicanos em bandeira nacional." Tal como a imagem da república, também nos anos finais da monarquia as cores republicanas tinham começado a definir-se. "Havia um cromatismo que a pouco e pouco foi sendo assumido pelos republicanos, que era o verde e vermelho. Provém das bandeiras do 31 de Janeiro e do 5 de Outubro, que eram diferentes mas ambas verdes e vermelhas." Fora já a bandeira verde-rubra que os republicanos vitoriosos empunharam no 5 de Outubro - era ela que Machado Santos tinha na Rotunda.

O uso das duas cores tinha antecedentes (embora não se possa atribuir a estes a sua origem). Explica ainda Severiano Teixeira, desta vez num texto sobre a simbólica da bandeira nacional: "Verde e vermelha (com a imagem da Nossa Senhora da Conceição ao centro) foi a bandeira da Ala dos Namorados na Batalha de Aljubarrota; verde e vermelha (fundo verde sobre o qual assentava a Cruz de Cristo vermelha) foi a bandeira dos Descobrimentos sob o reinado de D. Manuel I; e igualmente verde e vermelha (idêntica a esta última) foi a empunhada em várias revoltas contra o domínio filipino, que seria, ela mesma, a bandeira da Revolução do 1º de Dezembro de 1640."

Mas ali, no momento da queda da monarquia, o que o verde e vermelho representavam era, acima de tudo, a ruptura com o passado. "A ruptura está nas cores, a continuidade está nos símbolos, ligados à fundação da nacionalidade: D. Afonso Henriques e as cinco quinas, a esfera armilar, símbolos recuperados da tradição histórica nacional."

Mas muitos não se deixavam convencer. Um dos mais ardentes defensores do azul e branco foi o poeta Guerra Junqueiro - várias caricaturas mostram-no com a sua longa barba, agarrado à bandeira azul e branca e resistindo por vários meios ao "avanço" da verde-rubra. Junqueiro socorre-se da poesia: "O Campo azul e branco permanece indelével. É o firmamento o mar o luar, o sonho dos nossos olhos o êxtase eterno das nossas almas." O escritor e intelectual Sampaio Bruno avançou com argumentos mais pragmáticos: "É que a bandeira azul e branca (...) é a única que o preto de África reconhece como representativa da soberania de Portugal."

De nada lhes valeu. Logo a 15 de Outubro de 1910 o Governo cria uma comissão para decidir a bandeira: o pintor Columbano Bordalo Pinheiro, o romancista Abel Botelho, o jornalista João Chagas e os militares Ladislau Pereira e Afonso Palla. Não foi preciso esperar muito pela decisão. A 29 de Outubro, os membros da comissão propunham a bandeira verde e vermelha e justificavam a sua escolha num longo relatório que os jornais publicaram. O dia 1º de Dezembro foi declarado o dia da bandeira.

Recorda João Medina na sua História de Portugal, que Columbano, em entrevista a um jornal, "mostrou-se moderadamente céptico" quanto à escolha, que tentou defender dizendo que "o encarnado e o verde não se casam tão mal como se disse", que o importante era "encontrar o tecido que convém" e "não se aproveitarem as primeiras cambiantes dessas cores que apareçam". E sugeria os tons que considerava os certos - "o verde-carregado e o vermelho vivo".

Mas a festa do 1º de Dezembro estava à porta, era preciso ter a bandeira pronta, e, conta ainda Medina, na Cordoaria, onde foi feita, não havia os tons ideais. Columbano conformava-se, mas lamentava: "Só há o encarnado e o verde-esmeralda. É pena."

Jornalista

AmanhãAs eleições de 1911. Por João Bonifácio Serra

Esta série tem o apoio da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República

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