Misericórdias vão chamar Estado a resolver conflito com os bispos

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Bispos e misericórdias tentam relativizar divergências ADRIANO MIRANDA

Estão em campos opostos: o episcopado quer as misericórdias sob a sua tutela, estas dizem que são associações privadas de fiéis

As duas partes dizem que não há conflito, mas os bispos católicos e a União das Misericórdias Portuguesas (UMP) estão em lados completamente opostos por causa da definição do estatuto jurídico das misericórdias. Um decreto da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), entretanto sancionado pelo Vaticano, estabelece que aquelas instituições são associações públicas de fiéis, estando assim sujeitas à autoridade de cada bispo em cada diocese. A UMP rejeita a ideia, defende que as misericórdias são associações privadas de fiéis e promete meter Presidente da República, Parlamento e Governo no assunto.

O presidente da UMP, Manuel Lemos, disse ontem ao PÚBLICO que irá "falar com o Estado". Sem querer especificar que audiências poderá solicitar, adiantou que contactará os órgãos de Estado. E admite que, perante as notícias vindas a público - o jornal Sol referia-se ontem ao decreto dos bispos -, os diversos partidos políticos venham também a pedir esclarecimentos ao Governo sobre o que se passa.

Em causa, está o estatuto jurídico das instituições impulsionadas em 15 de Agosto de 1498 pela rainha D. Leonor. Com a entrada em vigor do novo Código de Direito Canónico (CDC) de 1983, a Igreja passou a distinguir associações privadas e associações públicas de fiéis. Entre outras diferenças, estas são da iniciativa dos bispos enquanto as primeiras partem da acção de grupos de crentes.

Com o aparecimento de alguns conflitos sobre a administração de bens, foi necessário resolver qual era o estatuto das misericórdias à luz do CDC. Vários pareceres jurídicos depois - incluindo alguns do Vaticano -, os bispos tentaram, com o decreto aprovado em Abril de 2009 na sua assembleia plenária e sancionado pela Congregação dos Bispos, da Santa Sé, pôr um ponto final no assunto.

Pontaria errada. Do lado da UMP, contesta-se a forma utilizada e o enunciado a que se chegou. Manuel Lemos diz que recebeu o texto para comentar em Novembro de 2009, tendo respondido em Fevereiro. E diz que as misericórdias são associações privadas invocando os argumentos do CDC - nomeadamente, o facto de serem criadas por grupos de católicos.

Uma das questões que estariam em causa - o reforço da eclesialidade (ou seja, do seu vínculo institucional e pastoral à Igreja) das misericórdias - já foi aceite pela UMP, mas sempre respeitando o estatuto de associações privadas que elas assumem, diz o responsável.

Comissão mista

O presidente da UMP indica ainda que vários juristas e canonistas estão do lado das misericórdias - entre eles, o padre Vítor Melícias, ex-presidente da UMP, especializado em Direito Canónico. Mas o desafio de uma comissão mista para dirimir o assunto nunca terá sido aceite pela CEP, diz Manuel Lemos. Além disso, as misericórdias italianas, brasileiras e de outros países lusófonos são associações privadas, recorda.

Manuel Lemos diz que, de qualquer modo, o decreto dos bispos não pode ser retroactivo. "Os juristas que consultámos dizem que não parece que ele se aplique às misericórdias que já existem, pois não se pode mudar por decreto a natureza das instituições", afirma o presidente da UMP.

Lemos acrescenta que duas assembleias gerais da UMP, que conta actualmente com cerca de 400 instituições filiadas, já aprovaram por unanimidade o seu estatuto de associações privadas.

Uma das perguntas que o presidente da UMP pretende fazer aos órgãos do Estado é se o decreto se aplica ou não à ordem jurídica do país. "Será que o Estado aceita que 70 por cento da rede de cuidados continuados fique nas mãos de uma confissão religiosa?", pergunta, para concluir: "Esta é uma questão por resolver na sociedade portuguesa, que coloca os católicos numa situação desagradável. Mas não queremos fazer nenhuma guerra."

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