Ministra vai distribuir terras e interditar praias, e diz que Portugal pode passar bem sem o nuclear

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Assunção Cristas estranha opção da Assembleia por água engarrafada

A titular da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território afirma que não vai haver privatizações nas águas, mas apenas concessões, e que Portugal tem de se preparar melhor para secas mais frequentes, agora e no futuro. Da lei do arrendamento à guerra dos preços na agricultura, a sua agenda é um mundo

Em certo sentido, lembra uma reforma agrária aquilo que a ministra da Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território, Assunção Cristas, quer fazer nas propriedades rurais do país. Aos 37 anos, o mais jovem membro da equipa de Passos Coelho pretende identificar as terras às quais ninguém se apresenta como dono, reclamá-las para o Estado e distribuí-las para quem as queira cultivar. Isto no espaço de quatro a cinco anos. Sob o seu chapéu, no executivo, está um mundo de competências antes espalhadas por diferentes tutelas, duas das quais - Ambiente e Agricultura - até agora conviviam mal. Cristas diz que é mais fácil assim e que o Ambiente é levado a sério no Governo.

Quando se anunciou a criação do seu megaministério, muita gente disse que a Agricultura iria sobrepor-se ao Ambiente. E, se olharmos para o programa eleitoral do CDS-PP, praticamente não há nada de Ambiente...

Há matéria de Ambiente no programa eleitoral, mas é evidente que o CDS fez sempre um grande combate político nos últimos anos mais na área da Agricultura. Eu diria que não deve ser por acaso que está nesta pasta uma pessoa que vem do CDS. Agora, a área do Ambiente para nós é tão importante quanto as outras. É um chapéu que está sempre colocado. Na perspectiva do Ambiente, creio que é bom o minsitério ter todas estas valências, porque conseguimos pôr as várias áreas a comunicar e a termos vantagens nelas todas.

Quando vai ao Conselho de Ministros, os seus colegas vêem que está ali a ministra da Agricultura?

É muito engraçado, porque os ministros vão-me chamando consoante as áreas que estou a tratar, ou é a ministra da Agricultura, ou a ministra do Ambiente, ou a ministra do Ordenamento do Território, ou a ministra do Mar. Penso que vêem tudo isso.

E o Ambiente tem peso no Governo?

A preocupação com o Ambiente tem a ver com a forma como consegue fecundar todas as outras áreas da governação, há uma sensibilidade do Governo grande nesta matéria. Estamos a trabalhar muito bem com a Economia no que diz respeito, por exemplo, ao licenciamento das actividades económicas. Com as Finanças, já comecei a conversar com o secretário de Estado de Assuntos Fiscais, porque está previsto, mais ou menos a meio da legislatura, começarmos a fazer uma reforma profunda da fiscalidade e é importante que possa ter uma sensibilidade ambiental.

O programa do Governo dá especial ênfase à auto-suficiência na Agricultura. É uma meta realista?

De acordo com a leitura que nós fazemos, das novas culturas, dos campos que estão a ser trabalhados, entendemos que é possível chegar a essa auto-suficiência, sempre medida em termos de valor. Pensamos que, a sete, oito anos, isso é possível.

Somos auto-suficientes em poucos produtos: no leite, no vinho, quase no azeite, e haverá também algumas frutas. Temos produtos, com destaque para os produzidos em modo biológico, que podemos exportar para mercados muito exigentes. É uma área que queremos fomentar. Em alguns projectos que estamos a desenvolver, como a bolsa de terras, vamos dar alguma prioridade à produção em modo biológico.

A agricultura é uma oportunidade para os jovens, mas estes queixam-se de recentes dificuldades à sua instalação.

Essa preocupação tem a ver com o facto de hoje se exigir que o jovem agricultor não só receba a verba correspondente à instalação, mas que apresente um projecto em que meta também algum dinheiro. Isso é uma resposta ao que aconteceu no passado, quando muitos jovens agricultores, como não envolviam o seu próprio dinheiro, por vezes acabavam por ter projectos que não eram tão sólidos, e facilmente se desvinculavam deles. O modelo que temos hoje, numa altura de restrição financeira, é mais exigente.

Os produtores agrícolas queixam-se cada vez mais do esmagamento de preços.

Estamos a trabalhar intensamente nessa matéria no âmbito da PARCA, que é a plataforma para o diálogo agro-alimentar, uma iniciativa nossa e da Economia. Tivemos já várias reuniões com o sector, a ideia é primeiro conseguir ter transparência nos preços, que neste momento não temos. Temos informação sobre o preço pago ao produtor, temos alguma informação da indústria, mas não temos a informação sobre como se forma o preço na distribuição.

A distribuição é acusada de ficar com tudo e a distribuição diz que é a produção que não está bem organizada.

Há um trabalho que passa por organizar a produção, dar-lhe mais força, para que se equilibrem as relações.

Depois vamos caminhar para um código de boas condutas e ainda para os contratos escritos, em que determinados conteúdos devem estar previstos e determinadas cláusulas, por serem abusivas, devem ser proibidas.

Tem defendido a possibilidade de expandir a agricultura para áreas hoje sem produção. Estamos a falar de que áreas?

Há um número estimado de um milhão e 500 mil hectares que podem ser aproveitados para a floresta. O que estamos a fazer é um trabalho em vários passos. Primeiro começar por identificar as áreas, dentro do Ministério da Agricultura, que não estão a ser utilizadas. Temos o levantamento feito e vamos fazer um concurso muito brevemente para canalizar para jovens agricultores e proprietários de terras confinantes, para que possam aumentar a sua dimensão.

Segundo, vamos iniciar um processo de cadastro, bem diferente daquele que estava a ser construído, que terá como base informação que já existe ao nível da administração. O objectivo é identificar o que não tem dono, e o que não tem dono pertence ao Estado. Só que o Estado também não sabe que terras são essas. Esse trabalho permitirá trazer mais terras para a produção florestal ou agrícola.

Quando prevê que este trabalho esteja concluído?

Em 15 dias, não... Até porque há muitos portugueses espalhados pelo mundo que têm terras deixadas em heranças e é importante sinalizar isso junto dos consulados e embaixadas, para que as pessoas possam aparecer. A ideia é que, à medida que se vá fazendo o cadastro, e confirmada que não há nenhuma interação com o Estado, dar um prazo para que venham sinalizar a propriedade. Se não vierem, é declarado o seu abandono e é integrada na bolsa de terras.

Ao mesmo tempo, iremos desenvolver a bolsa de terras, em que o Estado tem, no site do ministério, informação sobre terras que os particulares têm livres e querem disponibilizar. Vamos aprovar o projecto de lei em Conselho de Ministros dentro de um mês, e levar ao Parlamento. Penso que se pode fazer em poucos anos o que nos diziam que demorava 30. Em 4 ou 5 anos, isso já é viável.

Num período de seca, como o de agora, os agricultores tendem a reclamar ajudas do Governo. Os seguros poderiam funcionar?

É verdade que não funcionam e por isso é que, quando a dimensão é tal que atinge quebras que vão além dos 30%, nós podemos accionar um conjunto de acções junto da União Europeia. Mas, para isto, é preciso monitorizar e só se consegue medir com rigor uma vez passada a fase das culturas. O que nós vemos é que há culturas de Inverno que podem ficar muito prejudicadas, mas se, entretanto, começar a chover, o prejuízo pode não ser nenhum ou ser muito pequeno, e neste caso não podemos accionar estes mecanismos. Mas sabemos que o gado está a ser alimentado à mão em alguns sítios, e isto obviamente é preocupante.

Os agricultores não deveriam precaver-se, eles próprios, contra estas situações?

Quando nós vemos agora os agricultores a utilizarem palha que tinham guardada, é sinal de que há uma precaução mínima. Mas, de facto, ela não estava destinada a esta seca, estava destinada ao Verão. Nós temos homens em todas as partes do globo, em partes absolutamente inóspitas, e com estratégias de adaptação para sobreviverem. Em Portugal, temos de nos começar a preparar para situações com maior regularidade na área da seca. E por isso, também, tudo o que pudermos fazer do ponto de vista do bom uso da água e do regadio é muito importante. Além dos seguros, que são um instrumento importante, temos de ter outras estratégias de medidas simples, como as reservas de água, as reservas de cereais para alimentar o gado, ou outras medidas mais pontuais.

É errado temer a privatização do sector das águas?

Conseguimos viver sem electricidade durante muitos milhares de anos. Mas sem água é impossível viver. Essa essencialidade do bem leva a algum temor por parte das pessoas. Mas a verdade é que, por um lado, temos sistemas municipais privatizados de água em Portugal e ninguém está preocupado com isso. Por outro lado, a nossa ideia no Governo não é privatizar as águas, é reestruturar o sector de forma a dar-lhe sustentabilidade.

A ideia é reestruturar com sistemas em faixa, onde se possa ter um equilíbrio entre o litoral e o interior, e fazer concessão desses sistemas.

Criar estes sistemas em faixa significa, por exemplo, que os habitantes do Porto vão pagar a água de Trás-os-Montes?

Significa que nós conseguimos aproveitar a economia de escala que está no litoral, em virtude de populações mais alargadas, para equilibrar aquilo que é a solidariedade com o interior, com populações muito pequenas e um preço da água muito elevado. Para ter uma ideia, no Porto, o custo µ

± da água em alta é de 0,34 cêntimos. Há zonas do interior onde é de 0,66, mas por uma questão social, porque, se fosse para reflectir o custo, seria acima de um euro. E isto, de facto, é uma disparidade nacional que, a nosso ver, não tem justificação. É um peso excessivo sobre o interior, onde foram feitos investimentos muito grandes, às vezes com base em projecções de crescimento de população que nunca aconteceram e que eram irrealistas à partida. Mas a verdade é que foram feitos e têm de ser pagos.

A EPAL vai ser privatizada? O capital da Águas de Portugal vai ser aberto a privados?

Não. A nossa ideia é, no sector das águas, fazer reestruturação e concessões, não privatizações. Já na área dos resíduos, na EGF, pode ser um bocadinho diferente. Neste momento, há uma nova administração na Águas de Portugal, que está a trabalhar com estas orientações de base que nós transmitimos e que nos vão apresentar um plano.

Foi muito criticada a nomeação de dois autarcas, um do PSD e um do CDS-PP, para a administração da Águas de Portugal. Foi ideia sua?

É nossa convicção que só conseguimos ter um bom trabalho na reestruturação do sector das águas se tivermos um bom diálogo com as autarquias - o que significa também ter um bom diálogo com autarquias que têm uma posição muito diferente em relação à matéria das águas.

Há autarquias do litoral onde não há nenhum problema com o pagamento da água, onde a água é muitas vezes até uma fonte de receita relevante; com autarquias do interior, onde há problemas de pagamentos, há problemas de sustentabilidade e há muitas dificuldades.

E, por isso, a nosso ver, era um erro ter uma administração que não conseguisse ter gente que pudesse estabelecer um diálogo eficaz com as várias sensibilidades dentro do mundo autárquico.

Faz sentido nomear um autarca para administrar uma empresa à qual deve milhões de euros?

Ele não deve, é a autarquia que deve. Penso que é importante separarmos a questão pessoal da questão institucional.

Mas o presidente da câmara tem uma grande responsabilidade nisso...

Com certeza. Temos de arranjar soluções para que as dívidas não se prolonguem, para que, nomeadamente nesses casos mais críticos e mais dramáticos, essas situações não aconteçam para o futuro. As dívidas têm de ser pagas, mas temos que arranjar maneira de não haver esse avolumar, esse acumular de dívidas. E também de as câmaras não resistirem em repercutir no munícipe. Mas por vezes não repercutem porque os preços são de tal forma elevados e injustos, quando comparados com outras zonas do país, que preferem absorver este custo. O problema é que depois não absorvem, ficam a dever. Tudo isto são sistemas que mostram a maneira como o sistema evoluiu. Hoje, a Águas de Portugal deve três mil milhões de euros, por seu turno é credora de 450 milhões de euros das autarquias, que estão na dupla posição de clientes e accionistas dos sistemas. O Governo é muito sensível a todas essas matérias, porque de facto as autarquias têm estas dívidas, mas também não têm dinheiro para as pagar. No limite, estamos todos numa grande embrulhada, porque as autarquias não pagam, a Águas de Portugal tem aquele crédito que se vai avolumando, que pesa nas suas contas, e isso traz problemas.

E em termos de calendário?

2012 é o ano para fazermos a reestruturação do sector das águas. É isso que está acordado com a troika, e durante esse ano temos de avançar muito rápido.

O que acha da recusa do Parlamento em tomar água da torneira?

Enfim, cada um sabe da sua casa.

A Assembleia da República é a nossa casa...

Verdade. Mas tem uma administração que é feita por deputados que representam os portugueses. Eu acho um pedacinho estranho, com toda a franqueza. Aquilo que posso dizer é que aqui, no ministério, bebe-se água da torneira. E já se bebia antes, pelo menos na área do Ambiente, e agora bebe-se em todas as áreas.

Vai possivelmente enfrentar um embate tenso com a revisão da Lei dos Solos, cujo objectivo é acabar com as mais-valias urbanísticas...

Acabar com as mais-valias, acabar com aquilo que é a especulação em torno da transformação do uso do solo, que depois se prolonga. A nossa ideia é: transforma-se o uso do solo para determinada função, ou bem que a acção é concretizada ou, se não é concretizada, volta ao seu estado inicial.

E esta ideia, juntamente com as mais-valias, que não serão mais privadas, vai ser fundamental até para dissuadir a construção na periferia e para favorecer o regresso ao centro da cidade.

E tem apoio político para isso?

Creio que temos convergência no Governo sobre essa matéria. Há uma preocupação muito grande em dar sinais claros de que todo o ordenamento do território tem de ser feito de maneira diferente. Queremos que a Lei dos Solos seja uma verdadeira lei de bases do ordenamento do território. Há uma equipa que já vinha de trás, a trabalhar [nisso]. Em Março, ser-nos-á apresentado o trabalho técnico. Em Abril, faremos uma ampla discussão pública e estamos em crer que estes pontos são fundamentais e terão muito bom acolhimento.

A área da conservação da natureza é uma daquelas em que o seu ministério está mais apagado. O novo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas...

Ainda não nasceu porque a lei orgânica ainda não saiu. Mas está a sair. Nós já temos uma dirigente nova, a eng.ª Paula Sarmento, uma pessoa muitíssimo dinâmica, nova. Tem a vantagem, a meu ver, de não ser nem da área específica da conservação, nem da área específica da floresta, o que vai permitir dar aqui o dinamismo que queremos que este instituto tenha - desde logo, uma muito maior proximidade, em muito mais recursos alocados no terreno, em tudo o que tem a ver com a vigilância, a conservação, a prevenção, e depois também a vivência daquilo que são os nossos parques naturais.

Acredito muito que Portugal tem uma grande rota de crescimento verde e azul. Portugal precisa de ser mais verde e mais azul. Mais verde tem a ver com ambiente e com agricultura, mais azul tem a ver com o mar.

Como é possível fazer isso estando os parques naturais completamente depauperados em termos de recursos, técnicos, vigilantes, instalações, dirigentes?

Tudo está depauperado neste país, infelizmente. Aquilo que é o nosso desafio é tornar o ministério, através dessas sinergias que se ganham nessa junção, muito mais próximo e muito mais actuante no terreno. Sabemos que não há muito dinheiro, que não há muitas pessoas, que falta sempre gente em todo o lado. Mas também sabemos que muitas vezes para fazer controlos, para ir aos terrenos, vão num dia as pessoas da conservação da natureza, no outro vão os das florestas, no outro vão os do parcelar agrícola, no outro dia vão os da veterinária, e tudo isto com carros que são velhos, que gastam dinheiro em reparações, que têm emissões de gases com efeito de estufa - quando nós poderemos ter, com as pessoas todas a funcionarem muito melhor em rede, um ministério mais próximo, muito mais amigo do ambiente e dos investidores, muito mais virado para resolver problemas.

Cada novo ministro do Ambiente depara-se com um problema crónico relacionado com os investimentos no litoral. O que é que vai fazer nessa área?

Duas coisas: primeiro, uma boa atenção na revisão do plano [de acção para o litoral 2007-2013]. Segundo, trabalho de fundo, científico, sobre a dinâmica da orla costeira. Nós vemos uma erosão muito mais intensa do que aquela que era previsível, o que nos indicia que precisamos de produzir mais conhecimento científico nesta matéria. E, terceiro, ainda, no que diz respeito à segurança nas praias, estamos a ultimar legislação relevante nesta matéria.

Qual é a vossa ideia?

É, nalguns casos, haver interdições de praias, noutros haver condicionamentos ao uso da própria praia, dar poder aos banheiros para poderem actuar nos casos de incumprimento. A alternativa é betonar as arribas? É pôr as redes, como se vê nas auto-estradas? É isso que queremos para o litoral português? A nossa ideia é olhar para todas as praias e, nos casos em que haja risco e perigo, ou interditar totalmente ou parcialmente, ou tomá-las como praias condicionadas e com regras estritas sobre esta matéria.

Aquilo que penso que não devemos fazer - primeiro, as pessoas nem sequer concordariam com isso e, segundo, não temos dinheiro - é, de repente, entrar numa investida para manter as praias totalmente usáveis como tem sido até agora, com uma degradação clara da própria paisagem, do próprio ambiente. Creio que por aí nós não iremos. Um melhor uso e um uso mais responsável da praia obviamente estão na nossa preocupação e brevemente queremos aprovar legislação sobre esta matéria, para que as pessoas a possam conhecer a tempo da próxima época balnear.

Qual é a sua posição sobre a energia nuclear?

Muito mais do que estarmos a discutir se queremos nuclear ou não, acho que nós devemos estar a discutir sobre se podemos ou não mais eficazmente usar os nossos recursos. Se Portugal chegou à segunda década do século XXI sem energia nuclear, se calhar não precisa de ir por esse caminho.

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