Porque fez Cavaco um discurso vingativo?

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Cavaco Silva quando se preparava para discursar NUNO ferreira santos

Após o anúncio da sua vitória nas eleições presidenciais, o discurso de Aníbal Cavaco Silva surpreendeu todos pela falta de magnanimidade. Em vez de falar do futuro, o Presidente reeleito referiu-se com rancor aos ex-adversários. Porquê? Foi um deslize ou uma mensagem? Que consequências pode ter um discurso infeliz?

Cavaco Silva só saiu de casa quando foram divulgados os resultados definitivos. Era o vencedor inequívoco e tranquilo de uma corrida de seis candidatos: obteve mais de 52 por cento dos votos, contra menos de 20 por cento de Manuel Alegre, o segundo candidato. Os seus adeptos (e, mais ainda, os adeptos das outras candidaturas) esperavam um discurso magnânimo, próprio de um chefe de Estado. A tradicional promessa de ser "o Presidente de todos os portugueses", depois de uma campanha por vezes agressiva, como são todas. Mas no domingo à noite Cavaco surpreendeu. Em vez de falar do futuro, remoeu as ofensas do passado.

Os outros candidatos fizeram uma campanha de "calúnias, insinuações e mentira", disse ele. "São os políticos e os seus agentes que preferem o caminho da mentira, das calúnias, dos ataques sem sentido." Mas "a honra venceu a infâmia". E logo a seguir, de uma varanda do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, o monumento que simboliza a governação cavaquista, acrescentou que a sua vitória nesta eleição foi a "da verdade sobre a calúnia". E desafiou os órgãos de comunicação social a revelarem "os nomes daqueles que estão por detrás" da "campanha suja".

A História está cheia de maus discursos. Alguns foram esquecidos, outros ficaram eternamente agarrados à reputação de quem os proferiu. Em Portugal, pensemos, por exemplo, no primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo. Ninguém se lembra que foi ele que preparou as primeiras eleições para a Assembleia da República. Mas quem se esqueceu do discurso em que, respondendo ao povo que lhe chamava fascista, disse "bardamerda para o fascista"?

Bill Clinton, nos EUA, teve discursos de tomada de posse memoráveis. Mas não tanto como aquele em que explicou, a propósito do seu caso com Monica Lewinsky, que sexo oral não era sexo. A respeito dos presidentes americanos, aliás, há quem edite colectâneas dos melhores discursos, mas também dos piores, porque há a consciência de que estes fazem igualmente história.

O discurso de posse de Abraham Lincoln é tido como um dos melhores de sempre, mas logo a seguir veio Ulysses S. Grant, que fez um dos piores. Terminada a guerra civil, os americanos esperavam palavras inspiradoras sobre um futuro radioso de paz e prosperidade, mas Grant limitou-se a choramingar que era preciso pagar as dívidas da guerra civil, sem deixar de ressalvar que nunca quis ser chefe de Estado.

No caso de alguns presidentes, foi notória a diferença entre os discursos do primeiro mandato e do segundo. Thomas Jefferson foi brilhante da primeira vez e um desastre da segunda, em que passou o tempo a atacar, com voz sussurrante e rancorosa, os ex-adversários e a imprensa.

Mas quais são as consequências de um discurso infeliz? Depende. Podem não ser nenhumas, se os acontecimentos ulteriores o fizeram esquecer. Ou catastróficas, se a conjuntura já é periclitante. Quando Richard Nixon, na fase final das investigações sobre Watergate, disse na televisão "Os americanos têm o direito de saber se o seu Presidente é um escroque. Eu não sou um escroque", foi patético. Para milhões de americanos, ele próprio se tinha definido: era um escroque.

Os motivos por que se faz um mau discurso são vários. Uma precipitação, uma avaliação deficiente das expectativas, um mau conselheiro de comunicação, ou até um propósito estratégico que só mais tarde será compreendido.

Desabafo pessoal

Quanto ao discurso de vitória de Cavaco Silva, só ele sabe o que se passou. Ou nem ele. Terá tido Cavaco um desabafo pessoal, tão pouco consentâneo com a sua forma habitual de agir?

António Costa Pinto, politólogo e historiador, acha que sim. Cavaco não ouviu os conselheiros. "Ter sido apanhado no caso do BPN [Banco Português de Negócios], que está a ser criminalizado, perturbou-o emocionalmente", explica. "Cavaco tem tendência para respeitar as regras, e tudo o que faz se fundamenta em pareceres e estudos. Ele introduz temas, mas tudo muito bem pensado. Não faz nada por impulso, emocionalmente." Até agora. Segundo o investigador do Instituto de Ciências Sociais, os ataques à sua integridade moral, porém, "as informações e críticas sobre as suas relações com um grupo cujas actividades estão a ser criminalizadas" fizeram-no explodir. Conteve-se durante a campanha, mas no fim teve um desabafo.

"Aconteceu-lhe um pouco o que acontece aos outros políticos", disse Costa Pinto ao P2. "Por exemplo, [ao primeiro-ministro, José] Sócrates. Mas ele não estava habituado." E deixou que o discurso resvalasse para o nível de "algo que anima a política nos tempos actuais": o nível da conspiração. Porque, segundo Costa Pinto, "a conspiração existe na vida política democrática". "E os políticos estão razoavelmente bem informados sobre as actividades conspirativas dos adversários. Há uma grande dureza nas vidas internas dos partidos, as candidaturas, os financiamentos, legais e ilegais. É muito duro. Nós temos tendência a subestimar essa dimensão da vida política." E Cavaco tenta não a trazer para o plano do discurso público. Mas houve um deslize, e isso vai ter consequências na imagem que passou a vida a construir, de alguém acima dessas coisas.

Já Susana Salgado, investigadora de media e política e professora na Universidade Nova de Lisboa, não acha que a imagem de Cavaco possa ser muito afectada por este discurso. "A imagem de um político constrói-se durante muito tempo", diz. Não é um episódio isolado que a pode alterar. De qualquer forma, talvez o discurso da vitória de Cavaco não seja um episódio isolado. Susana Salgado, que publicou na editorial Minerva um livro, baseado na sua tese de doutoramento, intitulado Os Candidatos Presidenciais. Construção de Imagens e Discursos nos Media, observa o comportamento político de Cavaco há muito tempo. O suficiente para saber que ele não faz nada por acaso. "Todas as suas aparições são planeadas com cuidado. Desde os grandes discursos às pequenas intervenções. É raro, aliás, ele responder a questões que não estivessem agendadas. Tudo é pesado no conjunto de uma estratégia. Ele conhece o funcionamento dos media. Foi muito castigado por eles enquanto primeiro-ministro e aprendeu. Nos últimos anos Cavaco Silva tem sabido usar os media a seu favor em diferentes circunstâncias. Falou quando e como quis e sempre teve a exposição e a visibilidade pretendidas." Não é portanto provável que desta vez tenha falhado. "Em 2006 a campanha também foi muito negativa, e ele não reagiu desta forma."

No seu livro, que estuda a campanha presidencial de 2006, Susana Salgado usa um aforismo de Oscar Wilde para definir a campanha de Cavaco: "Perdoa sempre aos teus inimigos, pois nada os enfurece tanto." Se agora o Presidente decidiu fustigar os adversários no momento da reeleição, não o terá feito sem um motivo. Ou até dois. O primeiro pode ter sido "reforçar que, não obstante as várias tentativas dos opositores, a sua imagem não foi afectada". E o segundo anunciar que será mais interveniente neste segundo mandato. "A sua atitude de não responder aos adversários mudou sensivelmente nesta última campanha, e parece-me que isso não foi só devido aos frequentes ataques de que foi alvo, mas também porque pretendeu mostrar que seria mais actuante e interventivo num segundo mandato. O seu discurso na noite das eleições vai um pouco nessa linha."

Aviso a Sócrates

António Cunha Vaz, especialista em comunicação política e director da agência Cunha Vaz e Associados, partilha esta opinião. Cavaco quis anunciar que, neste segundo mandato, vai ser diferente. No discurso e nos actos. "No primeiro mandato Cavaco esteve preso às regras de uma comunicação desumanizada, eufemística, em que não se podem expressar sentimentos." Agora, Cavaco vai dizer o que pensa. E fazer o que acha que deve. "Agora vou ser activo, foi o que ele quis dizer. Sou o único que tem legitimidade para julgar, politicamente. E essa legitimidade vem do povo, como ele também referiu."

Com a expressão "magistratura actuante" Cavaco quis portanto dizer que "Sócrates não terá a paz que teve até aqui. Ao primeiro motivo, Cavaco vai actuar. Vai ter o mandato interventivo que sempre quis ter". Cunha Vaz lembra o comportamento que teve Jorge Sampaio no segundo mandato. "E a Santana Lopes nunca foi, por exemplo, colocada em causa a autenticidade do seu diploma de licenciatura. É preciso lembrar que temos um primeiro-ministro que, durante muito tempo, de cada vez que abria a boca era para mentir."

No entanto, apesar da sua manifesta intencionalidade, o discurso de vitória de Cavaco, para António Cunha Vaz, foi um erro. "Todo o capital de simpatia que granjeou na campanha, até junto do eleitorado que não era o dele, perdeu-o agora. Não foi um discurso de chefe de Estado. Foi mais o de um dirigente de um clube de futebol." Para as mensagens que quis emitir deveria ter usado um mandatário ou director de campanha. "Devia ter pedido a um assessor que atirasse cá para fora os ódios todos." A menos que o discurso tenha servido apenas para pôr os pontos nos is quanto à imagem de integridade, sendo agora corrigido no tom, aquando do discurso de tomada de posse. "Essa seria a única justificação técnica para isto. "Para que não restem dúvidas aos portugueses: eu sou mesmo honesto.""

João Tocha, consultor de comunicação e director da agência F5C, também espera que tenha sido esse o sentido do discurso. "Foi alguém que estava a conter-se e que abriu a válvula. Descomprimiu e disse o que lhe ia na alma. Pode ter dois significados. Ou é apenas: tinha de dizer isto, e está dito e ultrapassado; ou há um ressentimento e será preciso resolver o assunto no futuro."

A primeira hipótese é a mais provável, segundo Tocha. Mas a verdade é que Cavaco nunca diz nada por acaso. "Ao contrário do que se pensa, Cavaco é o político mais político que apareceu em Portugal nas últimas décadas. Sabe muito bem o que quer. Sabe ser popular quando é preciso, reservado ou com sentido de Estado, quando é necessário, ou secar tudo à volta, quando as circunstâncias o exigem. Não é o tecnocrata que muitos julgam."

O seu azedo discurso de vitória pode ser um sinal de que vai, no futuro, ser guiado pelo ressentimento. "Se eu fosse psicanalista, diria que ele mostrou que tem um problema interior para resolver. Colocou muita ênfase numa nota que pode ou não ser preponderante daqui para a frente. Não sei qual a sua capacidade de ultrapassar este ressentimento. Dependerá muito do aconselhamento do seu círculo mais próximo."

Para João Tocha, o discurso de Cavaco foi o de alguém "agastado". "Era o momento em que um vencedor deve partir para outro nível. Ficou agarrado à tese da conspiração, porque não soube lidar com temas incómodos." Como especialista de comunicação, João Tocha pensa que a campanha de Cavaco deveria ter respondido rapidamente a todas as questões sobre o BPN. Nestes casos, "a melhor política é a da antecipação. Explicar de forma rápida e clara, e assim esvaziar o tema. Como não o fizeram, devem depois ter calculado que, no "deve&haver" dos benefícios e ganhos, o melhor seria não falar no assunto. Devem ter pensado: isto resolve-se à primeira volta, e pronto. O assunto será ultrapassado."

E foi. Excepto talvez na cabeça do Presidente. Mas se o discurso lhe bastou como vingança, as consequências não serão graves. "A memória é curta", diz Costa Pinto, "e isto vai ser esquecido." Até porque é do interesse de todos que assim aconteça. Um mau discurso dá azar, pode ser muito perigoso.

Pode até matar. No dia da sua tomada de posse, a 4 de Março de 1841, o presidente William Henry Harrison proferiu aquele que é unanimemente considerado o pior discurso da História da América. Perante uma assistência de milhares de pessoas, ao ar livre, no meio de uma tempestade de neve, Harrisson debitou durante mais de duas horas o seu relambório de 49.647 caracteres, na maioria dos quais perorava, inexplicavelmente, sobre o Império Romano. Foi fatal. No dia seguinte caiu doente, com uma pneumonia, de que viria a morrer um mês depois.

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