Um boicote é sempre um alerta

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Canas de Senhorim queria separar-se do concelho de Nelas

Nas eleições presidenciais dos últimos 20 anos, chegaram às páginas dos jornais pouco mais de duas dezenas de boicotes. Algumas terras viram as suas aspirações ficar pelo caminho, mas outras chegaram aonde queriam - ou perto disso. De Ana Cristina Pereira (texto) e Paulo Pimenta (fotografias)

Já lá vão dez anos. José Novais ainda se lembra. Então não havia de se lembrar? Ia estar na mesa de voto. Num domingo, encontrou a porta da escola primária fechada a cadeado. No outro, burros a vedar o acesso à assembleia de voto. "O povo envolveu-se todo na barafunda."

Quintelafica a meia dúzia de quilómetros da cidade de Vila Real, mas a água canalizada não a cobria por inteiro. Os da parte mais alta corriam para a fonte com vasilhas de 10 e 15 litros. Já não correm. Os canos entraram nas suas casas. "Se não tinha havido boicote, se calhar estava tudo na mesma."

Estamos a três dias das eleições presidenciais de 2011. Aproxima-se a hora do almoço. À porta do café que abriu com os dinheiros trazidos de França, José Novais saboreia o sol de Inverno. Na cadeira de plástico ao lado, José Baptista, a recuperar de uma manhã a varejar oliveiras. O agricultor, de 82 anos, foi um dos beneficiados. Naquele tempo ainda se atrevia a acartar água. Agora, onde anda a força? "A coisa estragou-se!"

Nem só a falta de água canalizada eriçava quem morava naquela aldeia alcandorada nas faldas da serra do Alvão. Só ali se chegava pela estrada estreita e torta que vinha da cidade, via centro da freguesia de Mondrões. O povo queria que ela não conduzisse a um beco sem saída. Queria que seguisse até à aldeia vizinha de Agarez. E segue. Agora segue.

Ao ouvir vozes estranhas, Maria Helena, a mulher de Novais, vem cá fora. Mal capta o tema da conversa, desata a falar: "Em todo o lado fazem tanta coisa! Aqui, não há dinheiro, não há dinheiro, não há dinheiro. Também pago os meus impostos! O Cavaco [Silva] veio à cidade. Devia ter vindo aqui ver os buracos." O marido abana a cabeça. Também lhe parece haver um Portugal que escapa aos políticos: "Não custa andar no centro das cidades! Que venham cá dar uma voltinha. Nós estamos a pagar esgotos e ainda não temos! Se calhar nem daqui a 20 anos..."

No dia do boicote, em 2001, os burros usaram gravata - para melhor encarnar os políticos. Ainda há uns 50 na aldeia. Cada família tem os seus. Agora mesmo, a mulher de José Baptista passa com um cavalo e uma cabra para o lameiro onde ficou o seu burro. Usa-os para puxar o arado e a charrete. Planta "de tudo". E "de tudo", aqui, é batata, feijão, couve, cenoura, cebola...

Pagar multas

Que grande barafunda foi aquela na escola primária - que a falta de crianças entretanto matou. Um militar da GNR disse: "Quando mais nomes melhor!" E os que estavam a participar no boicote foram dizendo todos os nomes que lhes vieram à cabeça. E vieram tantos. Deram os nomes de pessoas que nem se meteram na consulta que haveria de reeleger Jorge Sampaio - na primeira corrida de Cavaco Silva à Presidência. Na hora de responder à justiça, "o povo não se uniu". Uns negaram presença, outros negaram presença. Só ficaram 18 - convencidos de que aquilo a nada levaria. Mas levou.

Numa casa que se avista do Café Novais, não houve um, mas dois, a pagar multa. "Ó Fernanda! Ó Fernanda! Anda aqui", chama Maria Helena. "Não tenhas medo! É para dizer que pagaram 200 contos quando foi dos burros." Fernanda Oliveira ainda hesita - "Estou mal arranjada!" Mas acaba por descer. "Dois filhos, só o marido a trabalhar, já viu? Para pagar, tivemos ajuda da minha mãe, da avó do meu marido e da minha irmã. Fui levar o dinheiro à Caixa Geral de Depósitos."

Ao chegar para almoçar, e ao recordar as consequências dos dois dias de boicote, o marido de Fernanda ainda se perde de riso: "Fomos logo dois! Noventa e seis contos cada um! Houve uns que pagaram 93 por um dia. Eu paguei 96 por dois dias. Fiquei a ganhar, não é?" Pelas contas da mulher, a ganhar a ganhar não ficou, porque ela nem meteu os pés na escola.

Os jornais dão conta de cerca de 20 boicotes nas eleições presidenciais dos últimos 20 anos - no último domingo houve três. O que aconteceu? Fomos saber o que se passou em nove casos. Em 1991, Riba de Ave recusou votar por causa da instalação de uma central de tratamento de lixo - a central lá está. Em 1996, em Amarante, Olo protestou por uns terrenos baldios que disputa com Fridão - ainda se arrasta em tribunal o processo referente aos 44 mil contos resultantes da venda de madeiras. Em 2001, em Lamego, Lazarim insurgiu-se contra um aterro - o aterro fez-se, o presidente da junta, Norberto Castro Carvalho, anda agora preocupado com a poluição da ribeira. Em 2006, em Alijó, Pinhão insurgiu-se contra a transferência dos três carteiros para a sede do concelho -e ainda hoje se queixa pelos atrasos dos vales de reforma.

Afinal, para que serve um boicote? "Funcionam sempre como um alerta, não caem em saco roto", comenta o politólogo André Freire. A história dos boicotes está por fazer. A sua eficácia - ou a falta dela - depende de múltiplos elementos. Às vezes, não se consegue tudo o que se quer - consegue-se uma parte.

Há populações que parecem ter desistido de lutar. Como Canas de Senhorim. Só que Canas de Senhorim não desistiu. Está à espera. Está à espera que o PS deixe de ser maioria.

O Parlamento aprovou, com os votos contra do PS, a desanexação de Canas de Senhorim do concelho de Nelas. Era 1 de Julho de 2003. A população desceu, eufórica, à capital. Um mês depois, Jorge Sampaio vetou a proposta. Revoltada com o volte-face, a populaçãochegou a cortar a passagem dos camiões da Empresa Nacional de Urânio - entretanto encerrada.

Ninguém esqueceu. "Estou a falar dos boicotes", diz Luís Pinheiro, subdirector da Escola EB 2,3/S Eng.º Dionísio Augusto Cunha de Canas de Senhorim, líder do Movimento de Restauração do Concelho de Canas de Senhorim, presidente da junta de freguesia, a uma eleitora que o vê ser fotografado na principal praça da freguesia. "Quem dera cá um!" - responde ela.

Sobra-lhe o que dizer. Com 12 anos de liderança do movimento, é como se tivesse tirado um curso de boicotes. "Acho que não votámos de 2000 a 2006 em todas as eleições menos nas locais." E organizar uma coisa destas numa freguesia com cerca de 3500 eleitores não é como fazer um pudim de pacote. "É difícil fazer um boicote sem alguma unanimidade." Ali houve-a. "O movimento era formado por gente de todos os partidos."

Os boicotes eram apenas uma parte da luta iniciada com a queda do antigo regime. Houve cortes de estradas e de linhas-férreas, manifestações em Nelas e em Lisboa, reuniões e greves de fome. E, no fim de tudo isso, o professor de Música conclui: "O boicote não é um acto muito correcto em democracia, mas a culpa é dos políticos que não dão respostas adequadas. Quando um povo chega a isso é porque acha que não tem outra forma de se fazer ouvir."

Canas de Senhorim reencontrou uma certa normalidade. Durante anos, a junta foi gerida por uma comissão administrativa. Em 2002, o movimento concorreu. Ganhou um, dois, três mandatos. Nas últimas eleições locais, alguns partidos apresentaram-se. Tudo pode recomeçar. Talvez baste o PSD voltar ao poder. "Para já, não há condições políticas para conseguir aquilo que reivindicamos. E temos de trabalhar no desenvolvimento da terra. Durante 20 anos, fomos abandonados. Tivemos de encontrar caminhos de entendimento com a câmara. O dinheiro de Nelas também é nosso."

E Souselas? Alguém se lembra de Souselas, a incaracterística freguesia de Coimbra que tanto barafustou contra a co-incineração de tratamento de resíduos industriais perigosos? Nas presidenciais de 2001, uns quantos entraram nas quatro mesas de voto, fizeram desaparecer cadernos eleitorais, rasgaram boletins - votaram oito dos 2563 eleitores inscritos.

Campas com "marquise"

A cimenteira continua a pincelar o cemitério, situado mesmo atrás. Há famílias que protegem as campas com estruturas de vidro e alumínio ou com plásticos. E famílias que esfregam campas com palha de aço todas as semanas. As noras de Delfim Eduardo, por exemplo, revezam-se na limpeza do seu jazigo desde que a viúva abalou para Trás-os-Montes. "Tem de se esfregar com palha de aço bem fina e de se pôr cera ou vaselina para o pó não agarrar", explica uma delas, de balde na mão.

Umas campas à frente, chora Conceição Neves, "a mãe mais triste do mundo". A mulher, de 78 anos, muda as flores ao que resta do filho levado pela doença há cinco. Para aqui traz as flores que cultiva no seu jardim. "[A cimenteira] já não afecta tanto. Aqui é pertinho. Vivo a um quilómetro. Já só sinto quando há suão" - o vento quente e seco que vem de sul.

Armando Casão, residente numa daquelas vivendas alinhadas ao lado do cemitério, também se queixa do pó. "Fui para a câmara e tudo! De nada valeu." De nada, não. "Isto melhorou muito, melhorou muito. Mas quando está este vento, ai, não há hipótese. Mas isso, olhe, o povo chegou a um ponto: o que vai fazer? Não há volta a dar! O Governo quer isto aqui!"

A co-incineração em Souselas foi uma das bandeiras de José Sócrates, ministro do Ambiente de António Guterres. José Sócrates, primeiro-ministro, não a ia atirar ao lixo. Perdido o tempo empregue na luta? O presidente da junta, João Pardal, julga que não: "Lembro-me de sair a correr para apanhar o comboio para a universidade e de ficar todo pintado de branco. Caia pó por tudo quanto era sítio. Houve evolução. A cimenteira minimizou o impacte sobre a população."

Pardal até conta vitórias para o todo: "O processo de Souselas despertou consciências. O país pôs-se a discutir, percebeu que é responsabilidade de todos proteger o ambiente." Mais: "Abriu Centros Integrados de Recuperação e Valorização e Eliminação de Resíduos Perigosos. Há cada vez mais soluções para os resíduos. Só os que não podem ser tratados devem ser queimados."

O caso chegou ao Supremo Tribunal Administrativo, que decidiu a favor da co-incineração. Mas o biólogo diz não saber o que se passa. Ainda esta semana, mandará um dossier à cimenteira e às autoridades competentes a perguntar. "Queremos saber se estão a co-incinerar. E, se estão, que resíduos? Qual a proveniência, com que tratamento prévio, que monitorização é feita, com que parâmetros, que medidas para minimizar o impacte? A junta e a população não têm informação. O que é lamentável. O processo devia ser mais público."

Cheiro insuportável

Abrir as portas pode ajudar a conciliar posições, mas não é receita infalível. A Savinor, a fábrica de transformação de subprodutos de carne e peixe, tem as portas sempre abertas à vizinhança e mesmo assim São Romão do Coronado, freguesia do recém-criado concelho da Trofa, acaba de lançar uma petição pela mesma razão que há 15 anos a levou ao boicote: os maus cheiros.

Ana Margarida Costa é que redigiu o documento posto a correr na terça-feira antes das últimas presidenciais: "É horrível alguém sair de casa e sentir um cheiro insuportável." Não é todos os dias, é nalguns dias. E nesses dias ela até tem pena das três filhas de oito anos. "Querem ir brincar para o jardim e é impossível." A advogada de 38 anos mudou-se para a freguesia há uns três anos sem perceber a intensidade dos cheiros - calhou vir ver a casa nos dias bons, calhou mudar-se numa época de menos odores.

Não imagina o que aquilo já foi.E já foi muito pior. António Miguel nasceu naquela terra há 33 anos e poderia dizer-lhe: "Não havia dia que a gente não protestasse contra aquilo. Andei na escola da Trofa. A gente não podia estar na escola com aquele cheiro. Aquilo andou assim muito tempo. Já saí da escola há uns anos do caraças. E só há uns dois anos é que aquilo melhorou."

O que aconteceu? A Savinor fora comprada pelo Grupo Soja em 2006. Investiu milhões de euros. Com a nova unidade de transformação a funcionar, o presidente do conselho de administração, João Pedro Azevedo, até convidou os velhos inimigos para conhecerem os cantos à casa.

João Pedro Azevedo enfia uma bata e uma toca e guia o P2 pela fábrica: "Há emissões fixas e nessas o encaminhamento de odores é directo. E há emissões difusas, que não saem por um sítio específico, mas que têm de ser tratadas. Investimos nas melhores técnicas disponíveis. Os gases são encaminhados para uma central de tratamento químico."

"Nada será eficaz se não houver uma recolha atempada de resíduos", reconhece. A empresa recolhe subprodutos (cabeças, ossadas, carnes não aproveitáveis...) em mais de 200 pontos (talhos, mercados, supermercados, conserveiras...). "O pior que pode haver é material em putrefacção." Não só pelo cheiro - também porque já não se pode transformar em farinha de carne ou gordura animal, que serve para fazer comida de cães e gatos.

Não é tudo. Não há muito tempo, a empresa emitiu um comunicado a explicar à vizinhança: "A situação de odores que se tem feito sentir na região tem a sua origem nas lagoas." Referia-se às águas que ali são sujeitas a um tratamento físico-químico. Têm um projecto concertado com entidades públicas - a Administração da Região Hidrográfica do Norte, a Águas do Ave, a Trofáguas. A ideia é "eliminar as lagoas e ligar a fábrica a uma estação de tratamento de lixo".

A estação de tratamento de lixo mais próxima fica a três quilómetros. O interceptor terá 7,5 quilómetros. Já devia estar pronto. Atrasou-se por ter de passar por alguns terrenos - pelo subsolo - de pessoas que não deram autorização: impôs-se pedir denominação de utilidade pública. Agora, esperam que a obra esteja pronta até ao Verão.

O presidente da junta, Guilherme Ramos, não acredita num milagre de lagoas. Por isso estava, sendo do PSD, ao lado do secretário do PS, na apresentação da petição: "Não me parece que os odores sejam todos da água. O cheiro muda de sítio conforme o vento. Tem aparecido uma gordura castanha nos estores e pensa-se que vem da fábrica." Admite, porém, que o tratamento das águas pode ajudar a diminuir os odores. E reduzir o número de residentes sem saneamento básico - o outro motivo do boicote de 1996. O interceptor da fábrica ligará dois lugares à rede, que cobre 60 por cento da freguesia. Nem uma voz a pedir o fecho. Os 180 empregos dão jeito.

Transferir o problema

Há quem se tenha livrado de uma questão ambiental com o boicote. Em Tondela, Vilar de Besteiros protestou em 1996 contra a construção do aterro e o aterro foi parar a Barreiro de Besteiros. Os camiões passam, com frequência, pela estrada que rompe o arvoredo.

"Valeu a pena!", lembra Carlos Vieira, sentado nas escadas da Associação Desportiva, Cultural e Recreativa de Vilar de Besteiros. Maria da Conceição Viana, um degrau abaixo, achega: "Queriam fazer aquilo a seguir à zona industrial. Passa um rio atrás." O terreno já acolhia uma lixeira a céu aberto. A população temeu que tudo piorasse.

Barreiro de Besteiros está sossegada. Quem o diz é Leonel Matos, um agricultor de 71 anos que guarda uma memória desses tempos: "A malta daqui foi ver um aterro perto do Porto. Era na Maia ou em Santo Tirso. Foram todos de autocarro. Vieram satisfeitos. Claro que há cheiro. Bom, hoje não há. Depende dos dias. Mas aquilo tinha de ir para algum lado. Vilar queixou-se, porque aquilo ficava perto de uma bacia de água." O homem, a intervalar a poda de uma ameixeira, sorri: "Aquilo vai ter ao rio na mesma." Vai ter a uma ribeira, que vai ter ao rio Criz, que vai ter ao rio Dão, que vai ter ao rio Mondego, que vai ter ao Atlântico.

Houve um tempo de arrependimento. Houve um tempo de revolta. Andava o país assustado com a doença das vacas loucas. De repente, Barreiro de Besteiros começou a ver chegar camiões carregados de farinhas. A população juntou-se e barricou a estrada que vai dar ao aterro sanitário, hectares e hectares de lixo coberto por plásticos seguros com pneus. "Tínhamos medo que aquilo começasse a fermentar. Lá para o Alentejo há tanto deserto!"

O sossego regressou àquela aldeia da região de Dão-Lafões. "Mas ainda há muita gente que não está contente com o aterro", enfatiza Fernando Silva, o motorista de pesados de 43 anos que ajuda Leonel Matos na poda. "O aterro veio beneficiar alguma gente. Quem beneficia está caladinho. Quem não beneficia queixa-se. É assim em todo o lado, não é?" Leonel Matos, agricultor de Barreiro de Besteiros, Tondela, queixa-se do cheiro do aterro; em Souselas não se dá como perdido o tempo empregue

no boicote

contra a co-incineração

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