O homem que limpou o pó à História de Portugal

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Alexandre Herculano retratado por João Pedroso (1877) retrato retirado do volume

Comemora-se amanhã o bicentenário do nascimento de Alexandre Herculano. Ou, mais exactamente, comemorar-se-ia, se o país que o sepultou nos Jerónimos, ao lado de Camões, não tivesse esquecido o homem que elevou a historiografia portuguesa a disciplina científica e que foi visto, por sucessivas gerações, como uma reserva moral da nação. Por Luís Miguel Queirós

Os 200 anos do nascimento de Alexandre Herculano, que se cumprem amanhã, estão a ser marcados por duas ou três louváveis iniciativas locais, enquanto o Estado, assoberbado com as comemorações da I República, ignora o fundador da moderna historiografia portuguesa e o pioneiro do romance histórico, para não referir a figura cívica que recebeu dos seus contemporâneos, numa alusão à integridade moral de que sempre deu provas, o cognome de "o homem de bronze".

Esta tarde, a Cooperativa Árvore e o editor José da Cruz Santos promovem no Porto uma "sessão evocativa" do bicentenário do escritor, que incluirá uma intervenção de Guilherme d"Oliveira Martins, uma leitura de poemas pelo actor António Durães e o lançamento do álbum Cinco Retratos para Herculano. Numa nota enviada à imprensa, os promotores da homenagem citam, com indiscutível pertinência, o padre António Vieira: "Se servistes a pátria, que vos foi ingrata, vós fizestes o que devíeis, ela o que costuma."

O Grémio Literário, de que Herculano foi sócio fundador, promove também, amanhã, uma pequena homenagem ao escritor, depondo uma coroa de flores junto ao seu túmulo, na Sala do Capítulo do Mosteiro dos Jerónimos. A ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, aceitou o convite da associação para estar presente na cerimónia. Acrescente-se ainda uma visita ao retiro de Herculano em Vale de Lobos, no concelho de Santarém, promovida pela Associação Portuguesa dos Municípios com Centro Histórico (APMCH) e o grupo Mais Saramago, e ainda uma exposição evocativa na Biblioteca Municipal de Ourém, e estão inventariadas as modestas celebrações previstas até ao momento.

Mas o "ano Herculano" só agora começa e ainda se vai a tempo de contrariar esse mau costume que Vieira denunciava. O ensaísta Eduardo Lourenço propõe que se organize um grande colóquio sobre o Herculano historiador, que, acrescenta, "devia ser promovido pelas duas grandes referências vivas da historiografia portuguesa: Vitorino Magalhães Godinho e José Mattoso".

A sugestão de Lourenço confirma o juízo hoje quase consensual de que o Herculano mais decisivo para a cultura portuguesa foi mesmo o historiador, não obstante a relevância que se possa conceder à sua obra de poeta, romancista e dramaturgo, que ajudou a introduzir na nossa literatura os ideais do Romantismo.

Num folheto comemorativo do primeiro centenário do escritor, publicado no Porto em 1910, Guerra Junqueiro usa o seu proverbial talento retórico para descrever, num texto hoje esquecido, o que a historiografia nacional devia a Herculano: "A História de Portugal era um enorme palácio desmantelado, com as janelas trancadas, as paredes fendidas pelos raios (...), e onde ninguém ousara penetrar com medo que desabassem aquelas podres escadarias monumentais, que contavam já setecentos anos de existência. Inspirava terror. Andavam lá dentro lobisomens, aparições lúgubres, fantasmas com sudários (...)." E o autor de A Velhice do Padre Eterno prossegue. "Foi então que apareceu um homem extraordinário - Alexandre Herculano -, que abriu a porta desse pardieiro monumental, que andou lá dentro durante vinte anos consecutivos a levantar as escadas, a limpar os móveis, a abrir as gavetas, a consultar os livros, a erguer as paredes, os tectos, as colunas, e que, depois de um trabalho incalculável, sobre-humano (...), veio à rua dizer com simplicidade aos transeuntes estupefactos: "Podem entrar.""

No Pátio do Gil

A metáfora da construção de um edifício adequa-se particularmente bem a Herculano, nascido numa família de reputados pedreiros e carpinteiros. O seu bisavô materno colaborou na construção do Convento de Mafra, e o filho deste, Jorge Rodrigues de Carvalho, foi mestre-de-obras do Paço Real e deve-se-lhe, entre outras obras, a escadaria da Igreja de S. Vicente de Fora, em Lisboa. Foi numa casa construída por este avô, perto do Palácio da Ajuda, que Herculano viveu a partir de 1839, quando o rei D. Fernando, marido de D. Maria II, o nomeou bibliotecário-mor das Reais Bibliotecas das Necessidades e da Ajuda, cargo que se revelará decisivo para o seu trabalho como historiador, quer pelo acesso a fontes documentais, quer pelo tempo que a função lhe dava para se entregar às suas pesquisas.

De seu nome completo Alexandre Herculano Carvalho de Araújo, o futuro autor de Eurico, o Presbítero nasceu em Lisboa no dia 28 de Março de 1810 (a poucos meses do início da terceira invasão francesa), no Pátio do Gil, propriedade, entretanto desaparecida, que fora construída junto à Rua de S. Bento por um seu tio-avô, António Rodrigues Gil.

Filho de um funcionário público de inclinações liberais, Teodoro Cândido de Araújo, recebedor da Junta dos Juros (antepassada da Junta do Crédito Público), Herculano viria a relembrar, quando gozava já de ampla reputação como escritor e historiador, que nascera numa "classe obscura e modesta" e que nela queria morrer. No entanto, ele e a sua irmã Maria da Assunção, dois anos mais velha, viveram uma infância e primeira adolescência sem dificuldades económicas, numa casa com uma pequena capela privada, jardim, árvores de fruto e horta. A ensaísta Maria Ema Tarracha Ferreira, na introdução a uma edição das Lendas e Narrativas, encontra diversas alusões saudosas a este Pátio do Gil na futura obra de Herculano, tanto na poesia como em excertos do romance O Monge de Cister, onde o autor evoca os domingos dos 12 anos, quando o "espírito infante se harmonizava como o hino eterno da natureza".

Este gosto pela vida campestre nunca o abandonará e, no final da vida, irá encontrar o seu pequeno paraíso rural na quinta de Vale de Lobos, onde produzirá o famoso azeite Herculano, que chegou a ser premiado numa feira internacional, em 1876. Os amigos que o visitavam em Santarém regressavam espantados com a vastidão e precisão profissional dos seus conhecimentos agrícolas.

Os anos de formação

Aos 11 anos, Herculano foi estudar com os padres da Congregação do Oratório de S. Filipe de Néri, que lhe ensinaram latim, grego, francês e filosofia, mas que também o tornaram um cristão convicto e um profundo conhecedor da Bíblia. Tendo sido sempre um espírito religioso, não deixa de ser irónico que muitos dos mais violentos detractores da sua obra historiográfica fossem homens da Igreja, que não lhe perdoaram a audácia de secularizar as origens da nacionalidade, dispensando a alegada intervenção divina na batalha de Ourique.

Os seus estudos de Humanidades, que visavam a frequência posterior da Universidade de Coimbra, foram abruptamente interrompidos em 1826. O pai cegara, deixando de poder trabalhar, e a família enfrentava agora graves dificuldades económicas. Herculano decide então frequentar a Aula de Comércio - uma espécie de ensino profissional criado pelo Marquês de Pombal -, pensando conseguir o mais brevemente possível um lugar no funcionalismo público. O homem que iria revolucionar a historiografia portuguesa nunca chegou, portanto, a frequentar a universidade.

Mas o Portugal da primeira metade do século XIX tinha noções um pouco peculiares do que convinha ensinar a um futuro negociante ou escrivão. Uma das disciplinas da Aula do Comércio, ministrada no próprio Arquivo Real da Torre do Tombo, era a Diplomática, na qual Herculano aprendeu a valorizar papéis antigos e se familiarizou com várias ciências auxiliares da história, da paleografia e da epigrafia à numismática ou ao estudo dos selos utilizados para autenticar documentos. É neste período que conhece João Pedro Ribeiro, professor da Universidade de Coimbra e um dos seus raros precursores na pesquisa, e na abordagem científica, das fontes documentais espalhadas pelos arquivos portugueses.

Estes anos servem-lhe também para adquirir um conhecimento sólido de várias línguas estrangeiras - espanhol, italiano, inglês e alemão, além do francês - e para alargar a sua formação literária, que ficou muito a dever ao convívio com a poetisa pré-romântica Leonor de Almeida, marquesa de Alorna, casada com um aristocrata alemão e tradutora de Goethe e de poetas ingleses.

Um liberal moderado

A vida pacata que até aí levara, alternando o estudo com a composição dos seus primeiros poemas, leva uma reviravolta com a instauração do absolutismo por D. Miguel, em 1828. Sabe-se pouco do que levou Herculano a envolver-se activamente na resistência liberal, mas o certo é que participou na fracassada revolta de 21 de Agosto de 1831, empreendida pelo regimento de Infantaria 4 de Lisboa. Obrigado a fugir, consegue embarcar num navio francês fundeado no Tejo e acaba por chegar a Inglaterra, onde permanece cerca de dois meses, seguindo depois para Rennes, na Bretanha francesa. Esta experiência de exílio, descreve-a nos pungentes versos do poema Tristezas do Desterro, que não parecem escritos por um jovem letrado que acabava de chegar ao centro cultural da Europa do tempo. E o facto é que Herculano não passou o seu meio ano de desterro a carpir saudades. Aproveitou para consolidar os seus conhecimentos, frequentando assiduamente as bibliotecas de Rennes e Paris.

No dia 29 de Fevereiro de 1832, parte para a Ilha Terceira, a juntar-se ao último bastião liberal, e alista-se no Regimento dos Voluntários da Rainha, onde terá como camarada de armas Almeida Garrett, que já então publicara os longos poemas Camões e D. Branca (e ainda a colectânea Lírica de João Mínimo), tidos como os primeiros exemplos do Romantismo na literatura portuguesa.

Ambos farão parte dos "bravos do Mindelo", como ficaram conhecidos os membros da expedição, liderada por D. Pedro IV, que desembarcou na praia de Arnosa de Pampelido, alguns quilómetros a norte do Porto, no dia 8 de Julho de 1832. Herculano tem 22 anos. Durante oito meses vai ser soldado, e, ao que parece, deu provas de valentia nas duras batalhas que marcaram o cerco do Porto. Mas ainda antes da libertação da cidade, D. Pedro IV libertou-o do serviço militar e ordenou-lhe que ajudasse o bibliotecário do Paço Episcopal a criar a futura biblioteca pública do Porto, que viria a ser formalmente instituída em Julho de 1833. Herculano foi nomeado segundo bibliotecário e, ao assumir a função, prestou juramento à Carta Constitucional, um voto que nunca trairá e que lhe irá trazer problemas a partir de 1836, com a ascensão da ala esquerda do movimento liberal e o triunfo do chamado Setembrismo. Os funcionários públicos são então obrigados a jurar a Constituição de 1822. Herculano, um liberal moderado, que encarava com suspeição a democracia e os sonhos de soberania popular, recusa, demite-se do cargo e regressa a Lisboa, fazendo publicar anonimamente um violento ataque ao Setembrismo, escrito em prosa poética: A Voz do Profeta.

Um trabalho gigantesco

Assume, em 1837, a direcção da revista Panorama, propriedade da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, patrocinada por D. Maria II. A publicação foi um êxito e terá chegado a atingir tiragens de quase cinco mil exemplares, num país cuja taxa de analfabetismo rondaria então os 90 por cento. É aqui que Herculano publica originalmente boa parte das suas obras de ficção histórica depois reunidas no volume Lendas e Narrativas, como O Bispo Negro ou A Dama do Pé de Cabra, e ainda parte de O Monge de Cister, que, com O Bobo e Eurico, o Presbítero, introduzem em Portugal o romance histórico.

Se Herculano não foi um poeta do calibre de Garrett, e é mesmo contestável que a sua poesia tenha integrado eficazmente as lições do Romantismo, já no romance histórico - subgénero ainda hoje manifestamente viçoso -, a sua contribuição ultrapassa claramente a do autor de O Arco de Sant"Anna. Também publicou duas peças de teatro - O Fronteiro de África e OsInfantes em Ceuta -, nenhuma delas comparável a essa obra-prima de Garrett que é Frei Luís de Sousa. Fora da obra estritamente historiográfica, talvez o seu grande livro seja mesmo Eurico, o Presbítero, cuja dimensão dramática e lírica - que o próprio autor, aliás, sublinhou, chamando-lhe "crónica-poema" - o transforma num objecto menos facilmente classificável do que os seus romances mais fiéis ao modelo de Walter Scott.

Com a Constituição de 1838, uma solução de compromisso entre o democratismo da de 1822 e o texto da Carta Constitucional de 1826, Herculano, que nesse mesmo ano publica a primeira edição reunida das suas poesias, sob o título A Harpa do Crente, reconcilia-se com o país e chega a ser eleito deputado cartista pelo Porto. Mas rapidamente se desilude com a política e abandona as Cortes para se dedicar às Bibliotecas Reais, cuja direcção lhe é confiada por D. Fernando.

A dimensão do trabalho que vai desenvolver ao longo da década de 40, vivendo na sua casa da Ajuda, é assustadora. Ao mesmo tempo que corre o país a coligir documentação, escreve os seus principais romances e trabalha na monumental História de Portugal, cujo primeiro volume sairá em 1846. Mas já em 1843, publicara na revista Universal Lisbonense as suas Cartas sobre a História de Portugal.

Para o historiador Rui Ramos, não há fronteiras claras entre a historiografia de Herculano e a sua obra de ficção histórica. Ramos recorda, por exemplo, que as páginas relativas ao cerco de Lisboa se "lêem como um romance", mas também sugere que Herculano usou a sua ficção quer para tratar períodos que a sua História de Portugal (que se encerra em meados do século XIII) já não abarca, quer para se aventurar precocemente no domínio da história das mentalidades.

Azeite e polémicas

Especialmente interessado nas origens da nacionalidade - um desiderato muito tipicamente romântico -, Herculano, nota Ramos, teve de fazer um duplo trabalho: reunir e organizar os documentos e, depois, interpretá-los e construir, a partir deles, uma nova narrativa da História de Portugal. Editada em quatro volumes, entre 1846 e 1853, a sua História de Portugal foi um sucesso público, mas que lhe valeu duras polémicas, sobretudo com o clero, que não gostou de ver desmontado o suposto milagre de Ourique, símbolo de uma deliberada intervenção da providência divina nas origens da nacionalidade.

Muitas das suas teses são hoje questionadas, como a da alegada não-existência de feudalismo em Portugal, ou a mitificação do poder dos municípios no Portugal medieval. Mas Rui Ramos sublinha que foi preciso esperar pela obra de José Mattoso para a historiografia respeitante ao período de formação da nacionalidade dar um salto decisivo em relação ao legado de Herculano. E ainda hoje, diz, "quem ler a História de Herculano fica bem servido".

É talvez o diferendo com o clero - alguns padres chegaram a usar o púlpito para atacar o cristianíssimo Herculano - que o estimula a escrever, nos anos 50, a História das Origens e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, ao mesmo tempo que corria o país, compilando os documentos que editará nos Portugaliae Monumenta Historica, projecto no qual trabalhará até ao final da vida.

Os anos 50 marcam também uma última fase de intervenção mais directa na vida política. Envolvido na revolta militar de 1851, liderada pelo marechal Saldanha, que encerrou o ciclo do cabralismo e deu início à Regeneração, Herculano rapidamente se desiludiu com a política regeneradora e, em diversos jornais, atacou o novo governo. Em 1852, ainda foi eleito presidente da câmara do entretanto extinto concelho de Belém, mas a partir de meados da década deixou definitivamente a política activa. Nos anos seguintes, vai tornar-se célebre pelas sucessivas recusas de lugares políticos, cargos públicos e honrarias. Não aceita ser deputado por Sintra, rejeita a nomeação para a Câmara dos Pares e a imposição da Grã-Cruz de S. Tiago, diz que não ao próprio D. Pedro V, que sempre admirou e que o tratava como a um mestre, quando o monarca procura persuadi-lo a aceitar a regência de uma cadeira no Curso Superior de Letras.

Em 1866 casa-se com Mariana Hermínia Meira, que esperara pacientemente durante décadas que o noivo tivesse tempo para as obrigações de uma vida partilhada, e retira-se para a quinta de Vale de Lobos, que adquirira em Azóia de Baixo, Santarém. Mas, enquanto vai aprimorando a sua produção de azeite, continua a exercer, nesses seus últimos anos, um contínuo magistério moral sobre o país. Em 1871, por exemplo, toma posição pública contra a supressão das Conferências do Casino, pesem embora as muitas divergências que tinha com Antero de Quental. A sua proibição, escreve, "é pior do que uma ilegalidade, porque é um despropósito".

Em 1877, querendo agradecer a visita que o imperador do Brasil, D. Pedro II, lhe fizera em Vale de Lobos, desloca-se a Lisboa, de onde regressa doente, vindo a morrer com uma pneumonia no dia 13 de Setembro. Ficou sepultado no adro da igreja de Azóia de Baixo até à sua trasladação para os Jerónimos, em 1988.

De então para cá, tem sido progressiva e injustamente esquecido, a ponto de o bicentenário do seu nascimento não ser assinalado por quaisquer iniciativas institucionais. "Uma vergonha", diz Rui Ramos, "que mostra bem o estado a que o país chegou."

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