Sentença de Duch: "11 horas por cada morto" na prisão S-21

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Memorial aos que morreram em Tuol Sleng, a prisão gerida por Duch TANG CHHIN SOTHY/AFP

Líder da prisão que se tornou símbolo dos crimes cometidos pelo regime foi condenado a 35 anos de cadeia, mas cumprirá apenas 19

Duch, o homem que geriu "com precisão matemática" a mais temida das prisões dos khmer vermelhos, foi ontem condenado a 35 anos de prisão por um tribunal especial do Camboja. Uma sentença que chega tarde e é demasiado leve para os sobreviventes e familiares das mais de 14 mil vítimas - os juízes perdoaram-lhe parte da pena e o carrasco poderá passar os seus últimos dias de vida em liberdade.

"Esperávamos que este tribunal atacasse a impunidade, mas ficamos a saber que se pode matar 14 mil pessoas e cumprir apenas 19 anos de prisão - 11 horas por cada morte", lamentou Theary Seng, que perdeu o pai na prisão Tuol Sleng, o antigo liceu para onde foram levados os "piores inimigos" do paranóico regime de Pol Pot (1975-79). "A minha convicção é que isto serviu para complicar as coisas no Camboja."

Trinta e um anos depois da invasão vietnamita que derrubou o regime, as feridas ainda sangram no país e, ontem, centenas de pessoas assistiram à leitura da sentença, transmitida pela televisão e rádios do país. Após o veredicto, Duch manteve-se impávido, mas muitos voltaram a chorar.

"Correm-me de novo as lágrimas. Fui vítima dos khmer vermelhos e hoje sou outra vez vítima", disse Chum Mey. Aos 79 anos, é um dos últimos três sobreviventes de S-21. "Não há justiça. Quero que Duch passe o resto dos seus dias na prisão", acrescentou, entre soluços, Hong Sovath, que também ali perdeu o pai.

Kaing Guek Eav, o verdadeiro nome do "camarada Duch", de 67 anos, foi o primeiro a ser julgado pelo tribunal especial criado em 2005 com a participação das Nações Unidas para julgar os homens que ajudaram Pol Pot a montar a sua utopia agrária - um regime livre do capitalismo e das zonas urbanas onde ele cresce. Para o conseguir, o regime esvaziou cidades, forçou milhões a trabalhos no campo e realizou purgas atrás de purgas. Calcula-se que 1,7 milhões de pessoas (um quarto da população) tenham morrido de fome, exaustão ou simplesmente executados nos campos de morte e nas prisões.

Tuol Sleng, nome de código S-21, era uma delas e Duch geria-a com zelo absoluto. "Trabalhou sem descanso para garantir que funcionava tão eficientemente quanto possível e fê-lo com inquestionável lealdade aos seus superiores", disse o juiz Nil Nonn, dando como provado que, enquanto chefe da prisão, Duch ordenou a tortura e execução de milhares de detidos. Contra ele havia dezenas de testemunhos e o enorme arquivo que ele construiu em Tuol Sleng - todos os detidos eram fotografados à chegada e as suas ordens registadas por escrito.

Mas o juiz disse não haver provas de que participou directamente nas torturas e citou os remorsos que ele demonstrou em tribunal como razão para rejeitar a pena máxima (40 anos) pedida pela acusação. O tribunal decidiu ainda perdoar-lhe cinco anos da pena inicial, por considerar que a sua detenção, em 1999, foi ilegal, descontando ainda à sentença os 11 anos que já passou na prisão.

A morosidade da justiça

À revolta das vítimas soma-se o desânimo alimentado pela longa espera por justiça. Pol Pot morreu em 1998 sem nunca ter ido a tribunal e muitos temem que o mesmo aconteça aos outros quatro dirigentes que aguardam julgamento, entre eles o "irmão número dois" Nuon Chea, vice do regime.

"O julgamento de Duch foi fácil, porque ele estava disposto a admitir o que fez e tudo se passou no S-21. Nos próximos casos a cena do crime é o país inteiro", explicou ao Asian Times Rupert Abbot, advogado do Centro de Direitos Humanos do Camboja.

As preocupações são alimentadas pela pesada burocracia do tribunal - que conjuga a lei do Camboja com a lei internacional e integra magistrados nacionais e estrangeiros - e pelas tentativas de ingerência de um governo que mantém profundas ligações aos khmer vermelhos.

Muitos dos altos funcionários do actual regime foram membros da guerrilha, incluindo o veterano primeiro-ministro Hun Sen. Foi ele quem, há semanas, avisou que a tentativa para acusar mais dirigentes poderá desencadear "uma nova guerra civil".

Donna Guest, responsável da Amnistia Internacional para a Ásia Pacífico, disse ao Guardian que "identificar apenas cinco responsáveis pelas atrocidades em massa não dá aos cambojanos a justiça que merecem".

Rupert Abbot acredita que o longo julgamento de Duch, boa parte dele transmitido pela televisão, contribuirá para sarar as feridas. "Ajudou as pessoas a compreender o que aconteceu e como aconteceu".

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