"Não é sensato um país em crise entreter-se com o processo de revisão constitucional"

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Jorge Miranda diz que na saúde a proposta do PSD já foi consagrada enric vives rubio

Jorge Miranda , um dos "pais" da Constituição da República Portuguesa, critica o timing da proposta de revisão do PSD. Mudanças urgentes só na justiça e depois das presidenciais.

Jorge Miranda, professor catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa, defende que, nos próximos tempos, o debate deve ser em torno da aprovação do Orçamento do Estado.

Tem defendido que esta não é a altura certa para rever a Constituição da República. Porquê?

A três meses das eleições presidenciais, não me parece correcto misturar revisão constitucional com a campanha eleitoral. Em segundo lugar, o debate fundamental dos próximos tempos deve ser em torno da aprovação do Orçamento do Estado. Tudo gira à volta desse tema: se o orçamento passar, a situação será uma; se não, iniciar-se-á uma crise política. Por outro lado, não é oportuno nem sensato um país que está numa situação económica como a nossa entreter-se com o processo de revisão constitucional. Mas há ainda uma outra razão. Os casos recentes, com o da Casa Pia, mostram que é urgentíssimo reformar as leis de processo e as leis judiciárias, o país não aguenta mais processos que se arrastam ao longo dos anos, é um desprestígio para a justiça.

E não há áreas em que é urgente fazer mudanças na Constituição?

Justamente na justiça é que acho que há necessidade de rever alguns artigos.

Quais?

Em primeiro lugar, não concordo que a presidência do Conselho Superior de Magistratura (CSM) seja assegurada pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Trata-se de funções diferentes, por isso devia ser alguém nomeado pelo Presidente da República. E a comissão permanente do CSM devia ter uma maioria de vogais não juízes, para evitar o corporativismo, que tem sido muito negativo. Além disso, o acesso aos tribunais superiores devia ser feito por concurso e por provas públicas. Todas as carreiras profissionais assentam em concursos, enquanto na carreira judiciária a progressão é feita com base na antiguidade e na avaliação do CSM.

Essa é uma reforma que irá gerar polémica.

Não é uma reforma fácil, mas é importante e contribuiria para a aumentar a qualidade da justiça. Outra ideia que tenho é unidade da magistratura. Concordo com a proposta que o PSD faz de fundir o Conselho Superior dos tribunais administrativos e fiscais com o CSM. Outro ponto que considero essencial é que a carreira de juiz tenha dedicação exclusiva. A actividade política é incompatível com a actividade judiciária. Isto devia estar na Constituição, além da proibição do sindicato dos juízes. Não sou contra associações de magistrados, mas sindicatos? Um juiz não é um trabalhador como outro qualquer, representa o Estado.

Portanto, a reformar só nessa área e não agora.

Começar por aí e simplificar as leis de processo é a grande tarefa legislativa que temos pela frente. Não digo que depois das presidenciais não se retome o tema, com certeza a Constituição tem que ser reformulada e aperfeiçoada. Quando estive na Assembleia Constituinte votei contra muitas coisas, mas o essencial - a liberdade, a democracia, o Estado de direito - não pode ser posto em causa. A estabilidade constitucional é muito importante.

Nesses direitos fundamentais inclui a proibição de despedimento sem justa causa, que o PSD pretende substituir pela expressão "razão legalmente atendível"?

Acima de tudo, trata-se de uma proposta redundante. É mudar para, eventualmente, depois se justificar uma maior liberalização. O conceito de justa causa significa proibir despedimentos arbitrários e não está esgotado na lei.

Por detrás da proposta do PSD não estará uma tentativa de pôr a Constituição em linha com as europeias?

Nenhuma Constituição é um produto teórico, é o produto da história. Provavelmente, eu não faria uma Constituição tão detalhista, mas a justa causa deve manter-se porque é uma garantia importante do trabalhador. Em alternativa admitiria colocar que são proibidos os despedimentos arbitrários.

Na área da saúde e da educação, concorda com as propostas?

Na saúde, o que o PSD pretende já está na Constituição desde a revisão de 1989: o Serviço Nacional de Saúde é tendencialmente gratuito, de acordo com as condições económicas e sociais dos cidadãos. Isto permite perfeitamente acomo- dar não só as taxas moderadoras, como a possibilidade de os custos serem diferenciados consoante o rendimento. Há 21 anos que é assim, o que causa espanto é que não tenha havido reformas legislativas para o concretizar. O que é universal - a saúde, a justiça e o ensino obrigatório até ao 12.º ano - deve ser tendencialmente gratuito. No ensino universitário deve haver propinas e, isto não é muito popular, deviam ser mais elevadas. Em contrapartida, o Estado deve contribuir para fazer baixar as propinas no privado e garantir que quem não pode pagar tenha isenções e bolsas de estudo.

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