"Contra os canhões, migrar, migrar"

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A história de Portugal é a história de uma migração. A saga da nossa identidade e afirmação é o saldo de uma diáspora

1. No torvelinho da "vertigem-voragem" mediática, que tudo simplifica e tudo amplifica, envolvi-me, fui envolvido e deixe-me envolver na recente polémica sobre a emigração. Envolvi-me, porque, antes e depois da política, sempre me mobilizei para a causa dos migrantes e dos nossos emigrantes em particular. Fui envolvido, porque há palavras, ditas às saídas dos carros ou à porta das reuniões oficiais, que viajam e tomam vida própria, muito para lá ou para cá da mais remota ideia daqueles que as pronunciam. Deixei-me envolver, porque, habituado às lides da comunicação hodierna, tenho obrigação de conhecer - e conheço efectivamente - o processo de "torna-viagem" de tudo o que se diz à soleira da porta ou debruçado no peitoril da janela. Envolvi-me, fui envolvido e deixei-me envolver. Mas agora que passou o Natal, e novas e fartas polémicas volverão e envolverão, não interessa nada o que se disse ou o que se queria dizer. Os emigrantes de sempre estão aí e, por muito que isso nos custe, os emigrantes de sempre são também os novos, os que irão partir.

2. A história de Portugal é a história de uma migração. A saga da nossa independência, identidade e afirmação é o saldo (também geográfico e demográfico) de uma diáspora. Ninguém melhor do que o padre António Vieira historiou e profetizou esse traço da nossa identidade como povo. Não decerto por coincidência, Vieira é o grande vulto cultural, espiritual e político da Restauração, crise das crises e exame supino da nossa viabilidade como nação.

Esse traço de carácter do povo português deveria fazer-nos pensar.

3. Deveria fazer-nos pensar sobre o estatuto de cidadania que damos aos portugueses que ganham a sua vida no exterior - de cidadania igual e não de cidadania "sobranceiramente" concedida. Cresci nos anos 70 e 80, anos em que ser emigrante, especialmente na Europa, representava um estigma. Um tempo em que, apesar das remessas, do pequeno investimento no interior e até do arejamento de mentalidades, as casas e os automóveis que ostentavam eram motivo de irrisão e de desdém. Processo análogo sofreram, pela mesma altura, centenas de milhares de "retornados", que não eram senão migrantes - migrantes induzidos por uma reivindicação tardia de ocupação do território colonial. Vieram sem nada, mas trouxeram um dinamismo e um modernismo de hábitos e costumes, que tarda em ser reconhecido. É estranho, mas num país de migrantes, em que os maiores feitos se devem àqueles que saíram e ao que essa saída propiciou, os emigrantes gozam de mau selo e de fama fraca.

A primeira exigência tem de ser, antes de qualquer outra, uma exigência ética, antropológica e radicalmente jurídica: a da reposição de um estatuto de cidadania plena, sem preconceito, sem discriminações, sem suspeições ou pequenas invejas de ocasião. Ser migrante, português ou não português, aqui ou noutra das partidas do mundo, não pode representar menos dignidade ou menos cidadania. Eis o que debates, artigos, postas e comentários - por mais inflamada que esteja a veia "nacionalista-territorialista" - não podem nem devem esquecer.

4. Mas aquele traço do ser português faz-nos pensar, além dessa exigência ética, na dimensão política. Julgo que, em Portugal, desde os Governos Guterres e Durão Barroso - muito com a ajuda e sob o impulso da Igreja - se fizeram progressos assinaláveis nas políticas para os imigrantes aqui residentes. Mas que política diferenciada temos desenvolvido para as nossas comunidades emigrantes, espalhadas pelos quatro cantos do mundo? Para lá do encerramento acrítico e irracional de postos consulares - que, em alguns casos, se vai revelar trágico - e da diminuição sistemática e progressiva do ensino do Português no estrangeiro - que configura uma tragédia consumada -, qual a política do Estado português para as suas comunidades?

Parece que nem todos se aperceberam de que, ao fim de cinco séculos de elasticidade territorial, Portugal acaba de regressar às suas exíguas e velhas fronteiras europeias. E que, do ponto de vista estratégico, isso significa que já só pode contar com o seu capital humano como ponto de apoio fora do território peninsular. Nunca foi tanto da conveniência - para não dizer da necessidade e até da necessidade ingente e estrita - do Estado português dotar-se de uma política para as comunidades emigrantes. Portugal tem de investir nessa rede inigualável de contactos e de potencial humano, cultural e económico para continuar como um espaço independente e viável de afirmação política, no quadro global, europeu e ibérico. Justamente porque hoje a tão incensada "soberania" já não é territorial, a capacidade de manter e estreitar estes vínculos pessoais - por definição, não-territoriais - tem ainda mais valor e mais potencial. Não se percebe, por isso, como tantos - e com tanto vozeamento - acham que um Governo deve abster-se de ideias e programas sobre a relação com as comunidades emigrantes ou deve abster-se de possuir qualquer instrumento de orientação e apoio aos previsíveis fluxos migratórios (sabendo-se, como se sabe, que tais fluxos terão invariavelmente lugar).

5. Por vezes, fica-se com a sensação de que muitos vêem na adopção de uma política para as comunidades e para os fluxos migratórios uma espécie de urdidura "expulsiva" ou "deportadora", ao som do lema "contra os canhões, migrar, migrar!". Mas são esses os mesmos que - talvez por arrogância social, preconceito intelectual ou ignorância histórica - não se dão conta que é de um fenómeno de natureza idêntica e similar que falam quando defendem a internacionalização das empresas portuguesas, o fomento da presença nos mercados de exportação, o intercâmbio maciço da cultura e da ciência, o nosso (deles) natural cosmopolitismo. Para um país de mais oito séculos, com as fronteiras que havia há sete ou seis, é ainda do mesmo fenómeno (ou talvez númeno) que falamos. Deputado Europeu (PSD) Vice- Presidente do Grupo Parlamentar do PPE (paulo.rangel@europarl.europa.eu)

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