Mais disciplina, através de mais concorrência

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Devido à protecção da União Europeia, ainda estamos a tempo de escolher uma solução não autoritária

Na passada quarta-feira, até de Varsóvia era visível a triste resignação com que os portugueses enfrentavam o derradeiro episódio da novela política nacional. O Governo ia cair, sem ninguém estar entusiasmado com a queda, e sem ninguém a lamentar realmente.

Nos dias seguintes, choveram as análises e os comentários. Mas talvez a melhor explicação para o que se passou esteja contida na seguinte expressão: "They have run out of other people"s money."

A frase é da sra. Thatcher, no final da década de 1970, e é de um rigor impressionante. "Eles gastaram todo o dinheiro dos outros" seria uma tradução aproximada, mas é seguramente o diagnóstico exacto do que se passou na quarta-feira passada. O despesismo do Estado português bateu no fundo, a ameaça de uma intervenção externa ficou iminente. Ninguém sabia ao certo o que fazer, a começar pelo Governo em funções - que aproveitou a oportunidade para sair de cena, culpando as oposições. As oposições fizeram-lhe a vontade, sem, contudo, saberem exactamente o que fazer em alternativa.

Na minha opinião, seria desejável que o ponto de ruptura a que chegámos pudesse suscitar uma espécie de exame de consciência nacional, em vez de mais uma troca de acusações mútuas - ou de manifestações a reclamar mais direitos. Talvez pudéssemos olhar para algumas responsabilidades que todos partilhamos na crise actual (ainda que, seguramente, uns bastante mais do que outros - mas devemos ser magnânimos num momento de crise nacional).

A primeira responsabilidade recai, em meu entender, na falta de disciplina de todos nós. O dr. Salazar dizia, com alguma razão, que a indisciplina era um defeito português. Por isso, ele achava que tinha de defender o Estado contra a indisciplina da própria sociedade. Não era totalmente falso. Mas esqueceu-se de observar o que a sra. Thatcher, mais conhecedora da cultura marítima de que Inglaterra e Portugal são herdeiros, observou muito bem: só o Estado pode realmente gastar todo o dinheiro dos outros. A sociedade civil, por mais indisciplinada que seja, acabará sempre por ter de pagar a conta com os seus próprios recursos. A conta do Estado, em contrapartida, será sempre paga com os recursos dos outros. Por outras palavras, a indisciplina da sociedade não é impune, a indisciplina do Estado tende a ser impune.

Não desejo, com este argumento, alimentar a corrente populista em crescimento entre nós contra os políticos e os respectivos partidos. A política é uma actividade nobre e, em liberdade, exerce-se sobretudo através dos partidos. Mas a nobreza da política reside em defender o interesse público. Este consiste, em primeiro lugar, em servir as pessoas e garantir que elas podem usufruir em liberdade responsável dos seus planos de vida, pagando naturalmente os custos das suas diferentes escolhas.

Devemos por isso ser claros sobre o foco principal da indisciplina portuguesa: o Estado. E devemos ser claros sobre as duas únicas alternativas para impor disciplina ao Estado: ou um governo autoritário, ou a limitação do despesismo do Estado através da disciplina impessoal da concorrência.

A grande diferença entre as culturas marítimas e as culturas continentais reside aqui: as continentais sempre recorreram à autoridade para restabelecer a disciplina, ainda que só o tenham conseguido temporariamente e com o custo adicional de gerarem revoluções e contra-revoluções; as culturas marítimas sempre se inclinaram para a concorrência como fonte duradoura e espontânea de disciplina.

No actual momento de falência das contas públicas nacionais, esta escolha está de novo perante nós. Devido à protecção da União Europeia, ainda estamos a tempo de escolher uma solução não autoritária. Mas não existirá solução não autoritária duradoura sem introduzir uma dose maciça de concorrência no sistema oligárquico-estatal português.

Eis porque, em minha opinião, a grande reclamação dos defensores da liberdade entre nós devia ser: mais disciplina, através de mais concorrência. Se esta reclamação fosse suficientemente clarificada, acredito que existiria uma maioria alargada a seu favor.

Director do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa; titular da cátedra European Parliament/Bronislaw Geremek in European Civilization no Colégio da Europa, Campus de Natolin, Varsóvia

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