Homicídio premeditad?o comunitári?o

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Há uma semana, no estado americano da Geórgia, um homem tinha hora marcada para ser morto. Só pensar nisto é já aberrante. Pode um ser consciente ter hora marcada para ir ao dentista, para se casar, para se encontrar com um amigo. Agora ter hora marcada para ser morto?

E quem marcou a hora? A comunidade. Se fôssemos os cidadãos do estado da Geórgia, ter-nos-ia cabido marcar aquela hora. Não diretamente, mas através das nossas instituições.

Imaginemo-nos no lugar da comunidade democrática que tem pena de morte. Teríamos de resolver outros pormenores. Quem mataria o prisioneiro? Teria forçosamente de haver um funcionário, provavelmente público, para o fazer. Esse funcionário teria de ser pago. E quanto? Qual seria o salário adequado para alguém que mata pessoas em nosso nome? Um salário fixo? Ou deveríamos antes pagar por cada pessoa que ele (ou ela) matasse? A parte entre parêntesis é necessária: se vamos contratar alguém para matar em nosso nome, deveríamos provavelmente abrir um concurso público, e aceitar candidaturas de homens e mulheres. Talvez devêssemos ter até quotas, não?

As preparações não acabam aqui. Teríamos de escolher a forma de matar o prisioneiro. E depois teríamos de adquirir os produtos para proceder à execução. E armazená-los. Certamente teríamos de criar uma repartição inteira dedicada a implementar a pena de morte.

Teríamos também de escolher um lugar para levar a cabo o ato, e dotá-lo de equipamento. Depois teríamos de fazer as coisas de alguma maneira, não escolhida por acaso, mas de acordo com um - como chamá-lo? - ritual. Vai ser preciso também ensaiar o que fazer no dia D, para que corra tudo conforme o plano.

Isto não lembra alguma coisa?

Sim: o homicídio premeditado.

Como o autor moral do homicídio premeditado, nós - a comunidade - temos de escolher a hora, o lugar, o executante, o modo. Temos que nos assegurar de que os produtos necessários foram adquiridos e que os equipamentos estão no lugar certo. É preciso ensaiar, ver o que pode correr mal. Depois é preciso adaptar tudo às circunstâncias, se houver adiamentos - como na semana passada, de algumas horas -, e estar prontos para agir quando chegar o momento. Pode dizer-se: mas aquela pessoa não merece viver. Bem, também isso nos aproxima do assassino com premeditação: escolher quem merece e não merece viver.

Quando chegar a autópsia, o documento dirá: homicídio. Que queriam que dissesse?

Na última revista Newsweek estes procedimentos são explicados até ao pormenor do algodão com álcool que é passado no braço do condenado à morte - para evitar que ele ou ela apanhe uma infeção. Escreve-se também que a pena de morte sai cara: a Califórnia sozinha gasta oito mil milhões com a pena de morte. Acrescenta a publicação americana: se o objetivo é dar segurança aos cidadãos, mais vale gastar dinheiro em polícia.

Há muita coisa errada na pena de morte. O homem de que falo estava provavelmente inocente do crime por que fora condenado, - mesmo que não estivesse inocente, já aconteceu a outros. O nome dele - Troy Davis - já saiu das notícias.

Os cristãos celebram a missa do sétimo dia para permitir um momento de recolhimento e de reflexão sobre aquela morte. E é um momento necessário e importante. O que fica aqui é o pensamento que me acompanhou nesta semana: como a pena de morte pode transformar toda uma comunidade em autora moral de um homicídio com premeditação. Historiador. Deputado independente ao Parlamento Europeu (http://twitter.com/ruitavares); a pedido do autor, este artigo respeita as normas do Acordo Ortográfico

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