Texas apaga Thomas Jefferson do currículo. E o hip-hop também

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Já não é preciso saber onde fica Washington DC. E a palavra capitalismo foi substituída por "sociedade de livre empreendedorismo". Se forem ratificadas, as mudanças na disciplina de Estudos Sociais podem estender-se a outros estados. Por Rita Siza, Washington

Há mais páginas dedicadas a Ronald Reagan. Mas as lições sobre o "pai fundador" Thomas Jefferson desaparecem. Numa decisão controversa, que poderá ter repercussões por quase todo o país, o Conselho de Educação do estado do Texas acaba de votar favoravelmente uma proposta de revisão do currículo escolar da disciplina de Estudos Sociais, obrigando à reescrita dos manuais do ensino secundário. O conteúdo será "ajustado" de forma a promover uma mensagem de inspiração cristã.

Num voto de 11-4, dominado pelos membros republicanos daquele conselho estadual, ficou determinado que os livros que os estudantes do Texas actualmente utilizam serão substituídos por outros novos, de acordo com um novo programa de cariz fortemente conservador, cujo objectivo declarado é "reforçar as tradições americanas de nação judaico-cristã".

Os novos critérios para o ensino introduzem lições obrigatórias dedicadas aos sistemas teológicos de Calvino e S. Tomás de Aquino, às teorias económicas "alternativas" e à importância de figuras e instituições do movimento conservador do país, como Phyllis Schlafly (que se opunha à igualdade de direitos entre homens e mulheres), a Minoria Moral, a Heritage Foundation, o "Contrato com a América" ou a National Riffle Association (NRA).

As lições sobre Thomas Jefferson, uma das figuras de proa da história da América, autor da Declaração de Independência e terceiro Presidente dos Estados Unidos, não resistiram ao ímpeto dos educadores conservadores do Texas e foram retiradas do currículo. As ideias revolucionárias de Jefferson, que é referido nos manuais como um dos modelos de pensamento do Movimento Iluminista, não agradam aos membros do Conselho de Educação, que se opõem à separação entre o Estado e a Igreja, como defendido por aquele "pai fundador".

O revisionismo dos membros do Conselho de Educação sobre o papel e a importância dos presidentes americanos é selectivo: os alunos não vão ouvir mais falar de Thomas Jefferson, mas em compensação terão mais capítulos dedicados a Ronald Reagan. E o discurso de tomada de posse do Presidente Abraham Lincoln, que pôs fim à Guerra Civil, já não será o único que os estudantes vão analisar - os manuais vão passar a conter a intervenção inaugural de Jefferson Davis, o presidente da Confederação que lutou pelo secessionismo.

Conspiração confirmada

Outra das lições históricas que foram alteradas é aquela que diz respeito ao chamado McCartismo. Os manuais do Texas vão dizer que a teoria da conspiração defendida pelo polémico senador do Wisconsin Joseph McCarthy, referente a uma infiltração comunista no Governo dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, foi confirmada depois da sua morte pela divulgação dos "Arquivos Venona", um conjunto de documentos que reproduzem as comunicações entre americanos pagos para espiar pela União Soviética. Acontece que os historiadores disputam essa leitura dos arquivos, dizendo que nenhuma das referências prova a existência de uma ligação soviética no Governo norte-americano.

Mas não é só a história política americana que vai ser ensinada segundo novos critérios. O currículo também foi modificado nas secções de economia e até mesmo de cultura, onde foi banida a referência ao hip-hop como uma forma popular de expressão artística do século XX.

Da lista dos feriados nacionais que os alunos devem estudar, foi retirado o Dia de Martin Luther King e incluído o Dia dos Veteranos. O termo capitalismo foi substituído pela expressão "sociedade de livre empreendedorismo". Já não será preciso saber apontar no mapa dos Estados Unidos onde fica a capital, Washington DC. E referências a geografias mais distantes, como o Amazonas ou os Himalaias, desaparecerão totalmente dos manuais escolares.

As alterações propostas estão a gerar enorme controvérsia, e não só entre a comunidade educativa. Mas o mais proeminente membro do Conselho de Educação do Texas, Don McLeroy (que se descreve como um "fundamentalista cristão"), defendeu a revisão do currículo, sublinhando que as mudanças foram introduzidas para "contrariar o preconceito liberal e secular vigente nos programas escolares".

Mavis Knight, uma das quatro democratas com assento no Conselho de Educação - composto por vários advogados, um dentista e o editor de um jornal semanário -, abandonou a meio a discussão sobre os critérios que deveriam presidir à escolha das matérias a ensinar aos alunos. "Houve uma evidente manipulação das propostas, que têm a ver com ideologias políticas e não com preocupações educacionais", explicou. "A única discussão que interessa ao Conselho é o conservadorismo contra o liberalismo."

"Para os secularistas, não há verdade, não há Deus... Para eles, só há evolução. Mas não é isso que está na nossa Declaração de Independência, o documento fundador do nosso país", sublinha, por seu lado, Don McLeroy. "Nós não vamos dizer aos alunos que a América é uma teocracia, mas vamos ensiná-los que os princípios sobre os quais a América foi fundada eram bíblicos."

"Os membros do Conselho de Educação do Texas têm certamente todo o direito de acreditar no que quiserem. O problema só existe quando as suas crenças religiosas obrigam a reescrever a história que os nossos filhos vão aprender", contesta o presidente da Aliança Interfés, Welton Gaddy. "A separação da Igreja e do Estado é dos princípios mais fundamentais da fundação do país, quer estes senhores gostem ou não."

Os dirigentes do Conselho Nacional para o Ensino da História também denunciaram as revisões propostas pelos legisladores do Texas como "factualmente incorrectas".

"O que está aqui em causa não é se a visão de um partido é superior à visão do outro partido, mas sim o bom ensino da História. E isso só se consegue com respeito e fidelidade aos factos", comentou o presidente daquela organização, Fritz Fischer.

Texanos e taliban

Os departamentos de História de várias universidades americanas já vieram a público condenar a iniciativa do Conselho de Educação do Texas. "Muito francamente, o nível de politização dos manuais escolares a que estamos a assistir é preocupante. Os danos para o sistema educativo desta revisão ideológica estendem-se muito para além do Texas, e é nossa obrigação moral condenar os critérios que foram utilizados", escreveu a Washington University em St. Louis, numa tomada de posição oficial. "Para nós, a subeducação, ou pior, a educação incorrecta e deliberada, é absolutamente intolerável."

O jornal The Houston Chronicle, da maior cidade do estado, arrasou a decisão num editorial intitulado A América não é uma teocracia: "Durante anos, o Conselho de Educação do Texas foi um embaraço e uma desgraça. Mas agora bateu no fundo, tomando como reféns os livros que vão instilar nos nossos filhos uma mentalidade que chega a ser anti-americana", acusou o diário. "A revisão do currículo de Estudos Sociais pela maioria conservadora daquele conselho tem como objectivo reescrever a História. Em vez do nosso passado complicado, os membros extremistas daquele órgão querem ensinar uma história simples do triunfo dos soldados cristãos. (...) Mas nós somos uma democracia, não uma teocracia, e somos livres de adorar o que quisermos. É esta ideia crucial que separa os texanos dos taliban."

Por seu lado, vários grupos evangélicos e conservadores têm elogiado a actuação do Conselho de Educação, considerando que o novo currículo garante aos estudantes texanos "um ensino de qualidade excepcional a nível mundial".

A reforma curricular aprovada pelo Conselho de Educação do Texas (e que terá ainda de ser ratificada num novo voto em Maio, depois de um período de consulta pública) pode acabar por estender-se aos outros estados do país, que, por razões financeiras, geralmente adoptam os mesmos manuais escolares.

O maior mercado de livros

O Texas, com 4,7 milhões de estudantes, é o maior mercado de livros escolares nos Estados Unidos, levando as editoras a usar aquele currículo como standard para os manuais que são publicados todos os anos. Apesar de ter idêntica responsabilidade na definição dos seus próprios programas, a maior parte dos outros estados acaba por encomendar as mesmas edições, uma vez que a produção maciça torna os manuais substancialmente mais baratos.

No entanto, vários políticos da Califórnia, o outro grande mercado para as editoras escolares, já prometeram agir para evitar que o revisionismo texano se torne norma naquele estado. O senador estadual Leland Yee apresentou uma proposta legislativa, que a sua bancada democrata prometeu apoiar, no sentido de impedir a adopção dos manuais com o currículo do Texas.

"O programa de Estudos Sociais que o Texas pretende ensinar não só é historicamente errado como é um insulto para todos aqueles que lutaram pelos direitos cívicos e pela representatividade das minorias", considera Yee. "Enfatizar o papel dos grupos conservadores e ignorar a existência de sindicatos e grupos de pressão liberais é incompreensível. Descrever os generais racistas do exército confederado como heróis americanos é simplesmente absurdo."

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