Arriscar em quatro minutos

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O solo que Olga Roriz criou para Ana Lacerda é uma homenagem à bailarina que, diz a coreógrafa, "tem transformado" a companhia RICARDO BRITO

Um compositor, nove coreógrafos, uma companhia. O programa com que a Companhia Nacional de Bailado festeja hoje o Dia Mundial da Dança quer abrir as portas do Teatro Camões, em Lisboa - ao público e aos criadores nacionais -, com "Uma coisa em forma de assim". Lucinda Canelas

Para Bernardo Sassetti é uma estreia - ter um par de bailarinos a dançar com o seu piano enquanto ele toca é um cenário completamente novo, mas nem por isso desconcertante. O músico parece estar no seu elemento, mesmo quando a coreografia que Clara Andermatt desenhou para os corpos de Irina Oliveira e Shang-Jen Yuan implica contacto entre os intérpretes e o homem que está sentado ao piano.

A estreia de Sassetti não foi a única a marcar a noite de ontem, no Teatro Camões, em Lisboa, nem a mais importante. É que, para a Companhia Nacional de Bailado (CNB), juntar nove coreógrafos portugueses num mesmo programa em que só cabem originais também é novidade. Se quiséssemos ser dramáticos poderíamos até dizer que o momento é histórico sem nos enganarmos.

"Uma coisa em forma de assim" é um dos primeiros projectos de Luísa Taveira enquanto directora da CNB e, explica ao Ípsilon esta ex-bailarina e programadora, cumpre na perfeição o seu desejo de abertura da companhia aos criadores portugueses e à contemporaneidade. "É maravilhoso poder ter aqui estas gerações de coreógrafos e um compositor como o Bernardo Sassetti a mexer na companhia. É muito importante que os bailarinos se exponham a linguagens diferentes daquelas a que estão habituados e que haja uma sensação de risco à nossa volta." A proximidade de três dos coreógrafos - Olga Roriz, Rui Lopes Graça e Vasco Wellenkamp, que antecedeu Taveira como director desta formação - é evidente, mas com os restantes - Paulo Ribeiro, Rui Horta, Francisco Camacho, Madalena Victorino, Clara Andermatt e Benvindo Fonseca - a colaboração é mais esporádica ou até nunca tinha existido.

Apesar de Olga Roriz e Paulo Ribeiro defenderem que o programa é de risco - "tanta gente para peças tão pequenas", diz ela, "bonito abrir assim a companhia, mas potencialmente perigoso", acrescenta ele -, Luísa Taveira diz que foi conservadora e que deixou de fora criadores da mesma geração (Vera Mantero e João Fiadeiro não aceitaram participar) ou mais novos que gostaria de ter incluído. "Queria ter sido mais corajosa, mas o grupo de coreógrafos que reunimos permitiu fazer aquilo que planeámos desde o início - trabalhar algo novo a partir da técnica e da fisicalidade dos bailarinos, que assim se sentiriam mais à vontade para arriscar."

Uma diva à saída do teatro

"Risco" é uma palavra que parece estar longe do solo que Roriz criou para Ana Lacerda, rosto da CNB nos últimos anos. Tudo porque quando vemos esta bailarina principal mover-se no seu longo casaco de peles temos a sensação de que a coreógrafa desenhou sobre aquele corpo magro que nos habituámos a ver dançar em pontas ou descalça, na piscina de "Pedro e Inês". "Construí o solo no meu corpo e depois passei-o para o dela. Mas a Ana estava sempre na minha cabeça enquanto trabalhava e é por isso que há uma certa recorrência de poses clássicas nestes breves minutos."

Os tutus são trocados por um negligé suave, as sapatilhas de pontas por sapatos pretos de salto alto, mas Lacerda não chega a perder a pose que a caracteriza, garante Roriz. "Há uma força muito grande na sua fragilidade. Tudo nela é muito especial. Como se na sua leveza houvesse sempre algo de muito pesado, indizível." Pesado é o casaco de peles - "quase mais pesado do que a Ana" - que ajudou Roriz a transformar a bailarina numa personagem. "Gosto sempre de transformar os bailarinos em seres de ficção. Para esta personagem tinha muito presente a ideia da diva à saída do teatro, depois de um espectáculo. Quando penso nele lembro-me da Margot Fonteyn a sair do São Carlos."

Trabalhar com Ana Lacerda num espectáculo que marca o no Dia Mundial da Dança, que hoje se celebra, era também uma forma de homenagear "uma artista que tem aproximado o público da companhia e que a tem transformado, tal como Dominique Mercy moldou a ideia que temos do trabalho de Pina Bausch e nos faz suspender a respiração sempre que aparece em palco". Quando Lacerda dança, conclui Roriz, o tempo também fica por vezes suspenso, mesmo numa peça breve como esta (as nove criações de "Uma coisa em forma de assim" têm na sua maioria quatro minutos).

Levar os bailarinos da companhia a explorar outros métodos de trabalho foi um dos desafios que Taveira quis promover com este programa assinado por nove coreógrafos e um compositor. Roriz, por exemplo, sabia que não podia compor o solo de Lacerda com base na improvisação, mas foi muito importante para alguns bailarinos o contacto em estúdio com coreógrafos como Paulo Ribeiro ou Francisco Camacho.

T-shirts e calças de ganga em bailarinos mais habituados a malhas e collants num dueto que se concentra nas relações de poder é o que propõe Camacho. Dois homens - um que manipula e outro que é manipulado - hão-de trocar de papéis, depois de se terem adaptado ao corpo um do outro, como bonecos feitos de plasticina.

Paulo Ribeiro, por seu lado, decidiu coreografar um quarteto a partir da ideia de reencontro. "São dois pares e, com eles, faço uma brincadeira à volta das pessoas que não conseguem separar-se ou que, apesar de tudo o que lhes acontece na vida, não deixam de estar umas com as outras." Para este criador que também dirige o Teatro Viriato, em Viseu, e que está a colaborar pela primeira vez com a CNB, este programa começou por ser um convite inesperado e, pouco a pouco, transformou-se numa surpresa boa. "Não sabia que os bailarinos eram tão generosos, atentos e abertos. Não fazia a mínima ideia de que estavam tão dispostos a experimentar." Luísa Taveira quer que se mantenham "assim".

Ver agenda de espectáculos pág. 51

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