Quantos nomes tem George Wright?

Sabemos que desviou um avião e pôs o FBI em fato-de-banho para lhe entregar uma mala com um milhão de dólares. Sabemos que a sua defesa invocou o seu activismo na luta pelos direitos dos negros. Sabemos que viveu em Argel, Paris e Bissau antes de se instalar em Sintra. Mas, depois de dois meses de investigação, ainda não é claro até que ponto estava mesmo ligado aos Black Panthers, que mão em Portugal escreveu a carta que lhe abriu as portas na Guiné e quem ajudou o americano George Wright a tornar-se Jorge dos Santos

Ao fim de 41 anos fugido das autoridades americanas, George Wright foi encontrado em Portugal, em Setembro. Esteve preso, saiu e esperou pela decisão do tribunal. Cinco meses depois, respirou de alívio: o pedido de extradição dos Estados Unidos era recusado.

Agora, já pode viver sem o peso de um segredo guardado durante mais de metade da sua vida. A espectacular fuga da prisão e o sequestro de um avião abriram telejornais de todo o mundo quando foi encontrado. Não é todos os dias que os media podem retratar a história real de uma intriga digna de filme. Talvez por isso mesmo, muito tenha ficado por contar. Tentámos sabê-la pelo próprio, mas Wright, através do seu advogado Manuel Luís Ferreira, recusou os vários pedidos de entrevista, bem como a resposta a um conjunto de perguntas enviadas por email com o objectivo de esclarecer factos e versões que contradiziam algumas alegações da sua defesa. Numa página do movimento contra a extradição de Jorge dos Santos, Ferreira colocou mesmo um post, a 12 de Abril, apelando a todos a que "não colaborem" com os jornalistas.

Depois de quase dois meses de investigação e de 150 contactos, chegámos à história do homem que teve pelo menos cinco nomes, viveu sempre em cidades pequenas e circulou debaixo das barbas dos americanos. O processo judicial está fechado. Mas a história dele não.

Tudo começou em Halifax, um condado pequeno no estado da Virgínia, Estados Unidos. Quando George Edward Wright ali nasceu, a 29 de Março de 1943, não viveriam na cidade principal muito mais do que as cerca de mil pessoas actuais. Os americanos combatiam na II Guerra Mundial e as plantações de tabaco da Virgínia aumentavam a sua produção.

Tem 12 anos quando Rosa Parks se recusa a dar o seu lugar a um branco num autocarro em Montgomery. É, assim, um pré-adolescente quando começa o movimento pacifista pelos direitos civis dos americanos negros, liderado por Martin Luther King. Apesar de a segregação racial nas escolas ser proibida em 1955, o Sul resistia e George Wright estudaria no Mary Bethune, um liceu só para negros.

O edifício de dois andares tinha uma cafetaria, um ginásio, uma biblioteca, um laboratório e era frequentado por todos os estudantes negros da zona. "A comunidade era pequena, íamos todos ao mesmo liceu", lembra Lauretta Martin, que diz ter conhecido Wright de vista, mas "não pessoalmente".

Na época, Lauretta, dois anos mais velha, não estranhava a segregação racial porque "não conhecia outra coisa". Mas anos depois juntar-se-ia ao activista Martin Luther King. Havia quem se recusasse a usar as mesmas casas de banho que os negros. André Cameron, americano e músico na Orquestra Gulbenkian que conheceu Wright em Lisboa, lembra-se de ir de carro com os pais a Washington e percorrer quilómetros à procura de um hotel só para negros, porque nos outros não podiam ficar. "Ninguém imagina como eram os EUA na altura. Diziam ao resto do mundo que eram o país da igualdade, mas isso era uma grande mentira."

Earl Green, 69 anos, não era da mesma turma que Wright, mas terá feito desporto com ele, diz por telefone. Descreve-o como o tipo que manda piadas, uma pessoa normal e popular, bom aluno. Na altura, os miúdos não andavam na rua como hoje. Os adolescentes não tinham muito para fazer. Organizavam festas em casa uns dos outros e Earl chegou a ir à de George.

Quando acabaram o liceu em 1961, George inscreveu-se na North Carolina Agricultural and Technology University (NCATU), em Greensboro, hoje a hora e meia de carro de Halifax, de acordo com o Google Maps. Um ano antes, em Fevereiro de 1960, quatro estudantes negros da mesma universidade entravam numa loja, Woolworth, pediam um café, viam-lhes recusados o serviço e organizavam o primeiro de uma série de "sit-ins" (ocupação pacífica) de Greensboro.

George Wright ainda consta dos registos da NCATU em 1962. Mas ainda nesse ano a sua vida dará uma reviravolta. Não em Greensboro, mas em Wall, New Jersey,cidade que fica a quase nove horas de carro. Porque se mudou para aqui quando ainda andava na faculdade não se sabe.

Na manhã de 23 de Novembro, uma sexta-feira, Wright foi a casa de um amigo, Julio DeLeon, "pedir dinheiro emprestado". Julio não tinha, George foi bater à porta de outro, Walter McGhee, que se preparava para levar a namorada, Betty, ao trabalho.

Supostamente, passaram a tarde juntos. Depois de jantar, com umas meias de seda castanhas emprestadas a Betty para usar como máscara e duas armas carregadas, George e Walter puseram-se no carro. Foram buscar Julio. Andaram às voltas até às 20h30-21h.

Julio ia a conduzir quando chegaram a uma bomba de gasolina Esso. George e Walter saíram, entraram na estação e apontaram a arma ao funcionário, Walter Patterson, 42 anos. "Isto é um assalto", disse Walter McGhee a Walter Patterson.

George Wright estaria de vigia à porta quando McGhee mandou Patterson pôr o dinheiro no balcão. Ele terá resistido, acabando por dar o dinheiro, mas ameaçando chamar a polícia - o que terá enfurecido os assaltantes, levando McGhee a disparar a arma. A seguir ao disparo, fugiram, mas George deixou cair um chapéu de feltro preto, com aba estreita, talvez na bomba ou a caminho do carro. O ferido ali ficou. Morreria dois dias depois.

Em casa de McGhee, onde estava Betty, dividiram o dinheiro do roubo: 79 dólares a cada. George mudou de roupa: tirou uma camisola que era de Walter e vestiu o seu casaco de couro preto. Sairiam para jantar, mas antes passaram a buscar a namorada de Julio. No Belmont Inn Wright pediu dois hambúrgueres com queijo e uma bebida alcoólica. Jogaram dois jogos de snooker, ele pagou um. Quando chegaram a casa de Walter eram umas 2h ou 3h. Pouco dormiram nessa noite: no dia seguinte, sábado, às 7h30, os amigos levaram-no a E. Orange, a uma hora de carro de Wall. Antes de morrer, e em dois momentos, Walter Patterson ainda conseguiu descrever o assalto à polícia. Eles seriam apanhados e levados para a prisão dois dias depois do assalto.

A descrição acima foi feita pelo próprio George Wright no interrogatório de 26 de Novembro de 1962, onde confessou o crime. Dá como morada uma casa em E. Orange e diz estar empregado.

Meses depois, Wright, que se tinha declarado inocente do crime de homicídio quando foi preso, decidiu não contestar a acusação, embora não se declarando culpado, supostamente para evitar ser julgado por um júri e poder ser condenado à pena de morte. Recebe uma sentença de prisão de entre 15 e 30 anos.

Militância na prisão

Quando chegou à prisão em Leesburg, New Jersey, John F. Kennedy era Presidente dos EUA. Terá ouvido o seu discurso histórico sobre os direitos civis, em Junho de 1963, meses antes de ser assassinado? Os EUA estavam em plena Guerra Fria com a União Soviética e em pleno começo dos movimentos de direitos civis e das lutas de libertação dos negros, conquistando o Civil Rights Act em 1964 e o direito de voto no ano seguinte. King já andava em campanha pacifista e o seu discurso "I Have a Dream" tornava-se numa bandeira.

As campanhas de não-violência dos direitos civis começaram a perder fôlego com o assassinato de Malcolm X, em 1965, e de Luther King em 1968, e as "exigências e militância" em movimentos mais pró-activos intensificam-se, sobretudo a partir de 1966, contextualiza-nos Waldo Martin, professor da Universidade de Berkeley e especialista no Black Panther Party (BPP, o Partido dos Panteras Negras).

Na Califórnia, nos finais de 1966, Bobby Seale e Huey Newton criam o BPP. Intitulam-se como um partido de autodefesa contra a violência policial, promovem programas de apoio à comunidade afro-americana. Tudo isto George Wright não "viu" por estar na prisão. Mas é provável que lhe tenham chegado ecos destes e de outros acontecimentos como os motins de 1967, em Detroit, cidade que se transformara num caldo de activismo político, e onde se juntaram vários grupos radicais e o próprio BPP.

"Acreditava-se que os motins de 1967 tinham aberto uma batalha revolucionária contra os EUA", lembra-nos Joel Rhodes, especialista de movimentos revolucionários em Detroit. Era também normal o BPP recrutar pessoas na prisão, até porque alguns dos militantes estavam, justamente, à margem da sociedade.

Se durante os seus anos na prisão George Wright teve ou não contacto com o BPP, ou se se interessou pelo que se passava, não se sabe. Acusado de assalto à mão armada, um homem, George Brown, chega à prisão onde está Wright em data imprecisa, mas depois de 1968. Na prisão, Brown lia tudo o que podia sobre os movimentos raciais - inclusivamente coisas de Amílcar Cabral, o líder guineense que se tornaria numa das bandeiras do anticolonialismo em África, contou-nos o próprio numa curta entrevista por telefone a partir de Paris, onde vive.

George Brown conheceu George Wright quando o próprio Brown já tinha decidido que um dia haveria de fugir, relata num livro, Nous, Noirs Américains Évadés du Ghetto (Seuil). Foram-se tornando próximos. Um dia Wright chega-se ao pé dele e pergunta: "Tens dinheiro?" Manda-o calçar-se e ir lá fora, ao pátio. Diz-lhe que ele e outros dois vão fugir. "Como?", pergunta Brown. Iam ter de roubar um carro, a prisão ficava no meio do nada, embora fosse um sítio pouco vigiado.

Esperaram pela contagem dos presos às 22h, saíram e foram em direcção à casa do superintendente. Viram-no a ele e à família da janela, a comer na cozinha. Dois deles empurraram o carro para não fazer barulho, e o que era mecânico fez a ligação directa. Tudo isto se passou, diz, em dez minutos. Ainda viram um carro a fazer o policiamento na rua, mas passaram despercebidos.

Chegaram a Atlantic City por volta da hora em que estaria a decorrer a contagem seguinte dos presos. Era 19 de Agosto de 1970 e Wright tinha estado quase oito anos atrás das grades.

O grupo reúne-se

Em Atlantic City, os dois George separaram-se do resto do grupo. Foram para Nova Iorque, onde chegaram às 9h do dia seguinte, sábado. Na segunda-feira, foram à segurança social pedir um cartão com nomes falsos, encontraram trabalho, mas cedo perceberam que não seria um sítio seguro porque um dos membros do BPP, Angela Davis, estava a ser procurada pela polícia em Nova Iorque, soube Brown. Partiram para Detroit - quando, exactamente, não é claro no relato que faz no livro, mas não parece ter sido mais de uma semana depois. George Wright encontrou trabalho num restaurante e ficaram em quartos alugados.

"Contactámos com os movimentos políticos, com os BPP e com o Black Liberation Army" (BLA, Exército de Libertação dos Negros), explica Brown à 2. O BLA era o braço armado do BPP que nasceu quando o partido estava a desmantelar-se e fez vários atentados nos EUA. "Mas tínhamos fugido da prisão, não tínhamos assim tanto contacto porque não queríamos ter problemas."

Oficialmente, nunca estiveram envolvidos, diz. Não é claro se Wright também teve o mesmo interesse político pelo BPP, mas Brown não esclarece nada que diga directamente respeito a George Wright. Um dos pontos usados na defesa de Wright foi o argumento de que o pedido de extradição dos EUA tinha como motivo a sua perseguição por causa "da sua raça, convicções políticas ou ideológicas", por ter "ligações" ao BPP e ser "um dos membros do Exército de Libertação Negra".

Chegaram a Detroit num momento crítico do partido. Nessa altura, o BPP era uma mina policial, confirma Ahmad Rahman, que esteve mais de 20 anos na prisão e foi responsável por um dos dois escritórios do partido em Detroit (hoje é professor na Universidade de Michigan). O FBI tinha estendido ao BPP a operação secreta CounterIntelligence Program, de infiltração no Partido Comunista americano.

Rahman nunca ouviu falar nem de Wright, nem de Brown. Mas não estranha porque, "se eram fugitivos", ir para o BPP era como "refugiarem-se num posto de polícia", diz por telefone. No BPP "não havia isso de pessoas a esconderem-se na cave", "toda a gente tinha uma tarefa", todos se conheciam. Muitos ex-presos tornavam-se activos politicamente, "queriam associar-se à luta contra o racismo e contra o capitalismo", alguns autodeclaravam-se membros do partido sem nunca o serem oficialmente. "Havia milhares destes que ninguém conhecia."

Quanto ao BLA, não é provável que alguém assuma ter pertencido a esta organização, ainda hoje na mira das autoridades americanas, segundo os peritos ouvidos. Os membros do BLA que o ex-Panther Rahman conhece "ou estão mortos, ou na prisão". Mesmo em relação ao próprio BPP há um espírito de secretismo, acrescenta Jeffries Judson, da Ohio State University, que há 20 anos estuda o partido.

Não havia sequer uma lista com os membros e a filiação era flutante - havia quem passasse de uns para outros grupos sem pertencer propriamente a nenhum. "Tem de perceber que há crimes nos EUA que nunca prescrevem. As pessoas têm medo de falar, claro."

Por outro lado, acrescenta o especialista de movimentos revolucionários Joel Rhodes, era prática haver um período de iniciação do BPP e nesta altura a célula de Detroit estava "a ser criticada por ser demasiado relaxada e deixar qualquer pessoa entrar": "É possível que Wright se considerasse um BP mas que não fosse reconhecido como tal pelo partido."

Em Detroit, Wright conheceu os outros homens e mulheres a quem a sua história de vida ficaria para sempre ligada. No livro Nous, Noirs Américains Évadés du Ghetto, escrito pelos companheiros do sequestro do avião George Brown, Melvin e Jean Mc Nair e Joyce Tillerson, fazem uma descrição detalhada de como se conheceram e planearam o espectacular voo até à Argélia (e que usamos para descrever o que se segue).

Wright, então com nome falso, arranjou trabalho num restaurante de fast-food de uma cadeia chamada Gino, em Detroit. A determinada altura foi a Baltimore fazer um estágio de formação. Na viagem, e entre os colegas, vai Melvin Mc Nair. Melvin, que tinha desertado do exército americano para não lutar na guerra do Vietname, era casado com Jean, então grávida e a trabalhar como professora de Educação Física. Wright e Melvin descobrem ter "muitas coisas e gostos em comum".

O casal terá chegado a Detroit quase ao mesmo tempo que Brown e Wright. Joyce Tillerson estava-se a mudar com a filha para a cidade e, através de um amigo comum, contactou os Mc Nair, com quem foi viver. Segundo ela, tinham conversas intermináveis e aprofundaram os seus conhecimentos sobre a história e cultura negra. Joyce, que morreu em 2000, não escreveu muito sobre George Wright, mas os dois terão tido uma relação. E, segundo Melvin, os cinco acabaram por ir viver todos juntos para o mesmo apartamento. O ambiente que Brown, Melvin e Joyce relatam é de quem discutia muito política e questões raciais, queria ser activista e estava farto de viver na clandestinidade.

Depois de lerem uma notícia sobre o desvio de um avião por dois membros do BPP em direcção à Argélia, com um pedido de resgate de 500 mil dólares, tiveram a ideia de fazer o mesmo, explica George Brown à 2. "Queríamos participar no que se estava a passar e em Detroit não podíamos fazê-lo por causa do nosso passado. Na Argélia podíamos. Queríamos ter contacto real com as pessoas que estavam a fazer coisas", continua.

Após a independência da Argélia em 1962, dezenas de grupos revolucionários de todo o mundo concentraram-se na capital, apoiados pelo Governo. A cidade tinha-se tornado num foco de atracção.

Os cinco começaram a planear o desvio do avião, com o objectivo de aterrar em Argel, presume-se que em Junho e Julho de 1972. Melvin escreve que escolheram um voo que seguia o trajecto Detroit-Miami por ser o que tinha os bilhetes mais baratos. Certificaram-se de que não havia detectores de metais para as armas poderem passar. Os homens assumiriam o controlo das operações e as mulheres tomariam conta das crianças, os dois filhos dos Mc Nair e a filha de Joyce.

Não usariam violência, combinaram. Escolheram a data: 31 de Julho. Segundo Melvin, escreveram cartas aos muçulmanos negros, ao BPP e a comentadores de televisão para explicar as suas motivações; deram os seus bens a vizinhos e amigos dizendo que iam partir para África, onde estavam as suas raízes; na véspera, fizeram uma cerimónia religiosa para dar sorte e um ritual que simbolizava o enterro do racismo na América.

No embarque do avião da Delta Airlines, homens e mulheres separaram-se. Os homens embarcariam no último momento, depois das mulheres, vestidas com uma camisa e calças cheias de correntes de metal para testar a eficácia dos detectores. As armas foram escondidas nas crianças e na Bíblia carregada por Wright, então vestido de padre e usando o nome Larry Burgess (parte do apelido verdadeiro de Joyce Tillerson), lê-se num telegrama do Departamento de Estado americano para a embaixada em França.

Esperaram que os 94 passageiros acabassem o pequeno-almoço a bordo. No momento combinado, Melvin e George Wright dirigiram-se à cabine do piloto para negociar. A hospedeira perguntou a Melvin se deveria continuar a servir bebidas como se nada se passasse. Ele respondeu-lhe que sim.

Antes de chegarem a Miami disseram que eram revolucionários negros, que queriam ir para a Argélia e que exigiam um milhão de dólares. As negociações terão durado duas horas. Autorizaram os passageiros a sair em Miami - e dizem que houve alguns que os apoiaram.

Fizeram uma exigência: quem se aproximasse do avião, teria de vestir apenas fato-de-banho. O episódio foi filmado e passou nos noticiários da época.

George Brown diz-nos que tudo foi planeado pelos cinco sem apoio do BPP e que a ideia de pôr os polícias em fato-de-banho "apareceu". "Tínhamos lido sobre erros que as pessoas fizeram noutros sequestros de avião em que a polícia veio à paisana, misturada com o resto dos passageiros, e afinal tinha armas. Por isso resolvemos o problema das armas ao dizer a todos que se aproximavam do avião para irem de fato-de-banho. Assim não as podiam esconder." O piloto que entrou em Boston, onde tiveram de parar antes de seguir para Argel, também foi obrigado a ir de fato-de-banho.

Depois de descolarem, sentaram-se a fumar, conta Melvin no livro. "Na viagem, os sequestradores fumaram marijuana o tempo inteiro", lê-se no telegrama do Departamento de Estado.

Chegariam à Argélia a 1 de Agosto de 1972. Para trás deixavam o seu passado criminal: George Brown tinha uma pena de prisão de três a cinco anos por assalto à mão armada, Melvin Mc Nair seria preso por ter desertado, e George Wright cumprira apenas sete anos e sete meses de uma pena de 15 a 30 anos.

A desilusão com os Panthers

A pedido dos cinco, Eldridge Cleaver, o líder da secção internacional do BPP na Argélia, terá sido avisado de que eles iam a caminho. Pediram-lhe que os fosse buscar à chegada, segundo Melvin. Uma delegação do Governo argelino terá ido recebê-los. Mas Cleaver não apareceu.

Foi-lhes dito que o dinheiro e o avião teriam de ser devolvidos aos EUA, embora eles pudessem ficar na Argélia. Deram-lhes sumos e chás e levaram-nos a uma esquadra. O ambiente descrito por Melvin é intimidatório: a polícia interroga-os e leva-os para um hotel, onde ficariam sob vigilância. Membros do BPP só apareceriam mais tarde. Passaram-se quatro ou cinco dias até se encontrarem com Cleaver e ficarem sob a responsabilidade do BPP. Estavam à espera de encontrar 20 membros do partido, mas não eram mais do que seis. E a ideia de que vinham ajudar a "causa" desfez-se ali. Cleaver ainda chegou a escrever um comunicado a pedir ao Presidente Houari Boumediene que deixasse ficar o milhão de dólares para o BPP. Sem sucesso.

Aqui as versões da história começam a divergir. Claramente no encontro com os líderes do partido não houve a sintonia de que estavam à espera. Brown e Melvin contam no livro que Eldridge Cleaver não lhes deu apoio e retratam alguma desilusão. Ele já morreu, mas a sua mulher Kathleen Cleaver, também na Argélia, tem uma versão diferente do que Wright conta hoje sobre a sua ligação ao BPP e ao BLA. Nuns emails trocados com a 2, diz: "Tanto quanto posso apurar, os únicos Panthers que Wright conheceu foram os que conheceu na Argélia. Ele não teve nenhum contacto com o BPP nos EUA que, em 1972, estava em desintegração."

A actual professora na Universidade de Yale clarifica: "Não faço absolutamente nenhum comentário sobre o que diz Wright, uma vez que não tenho conhecimento de qualquer declaração dele sobre a sua relação com os BPP antes do sequestro do avião." E é bastante assertiva quanto à relação de Wright com o BLA: "Identificá-lo como membro do BLA é pura ficção."

Uma coisa é certa: no texto que escreveu para o livro The Black Panther Reconsidered, de Charles E. Jones, em 1998, Kathleen conta o episódio do sequestro e diz que nenhum dos cinco parecia ter "qualquer consciência política". As conversas dos cinco, continua, revelavam o que pareciam "estranhas crenças espiritistas e vagas convicções pan-africanistas". De novo à 2 refere que, "se eles tivessem tido qualquer contacto com os BPP, teriam sabido que o Governo argelino era extremamente hostil a sequestros de avião e que os anteriores sequestradores tiveram de devolver o dinheiro e o avião aos EUA".

Parte destas fricções podem ter a ver com a história da secção internacional do BPP. Eldridge Cleaver, a favor de uma luta armada, era uma figura controversa, que tinha fugido da América acusado de tentativa de homicídio em 1968. Defendia um partido revolucionário contra o Governo americano, lembra o especialista Joel Rhodes, e encorajava o BPP a ser mais pró-activo, "a fazer determinadas coisas que o punham em colisão com os EUA".

Há relatos de que a degradação das relações entre Cleaver e o Governo argelino não se deveram apenas a diferenças ideológicas, mas ao facto de Eldridge se ter desligado cada vez mais da questão política. Wassyla Tamzali, escritora e feminista argelina, descreve um país, na época, em "ambivalência", com uma orientação ideológica oficialmente socialista, mas conservador na prática. Internamente, o Governo de partido único, o FLN, era fechado, mas tinha abertura no plano internacional, acolhendo movimentos revolucionários de todo o mundo. "Os BP estavam lá porque tinham boas relações oficiais com o Governo. Mas havia um fosso entre eles, porque o Governo exercia um controlo sobre a família, a sexualidade, a mulher..."

Certo é que Wright chega a Argel, cidade onde circulavam activistas de todo o mundo, como Amílcar Cabral na sua luta contra o colonialismo, numa altura em que os BP estavam de partida e já não "tinham o contrapoder e influência que julgavam ter" junto do Governo argelino, como lembra o professor de Berkeley Waldo Martin. Kathleen Cleaver diz no seu livro que, em parte como "resposta directa" ao sequestro em que Wright participou, o Governo argelino pô-los, aos membros do BPP, em prisão domiciliária e mandou-os sair do país.

A Argélia também já não era, em 1972, o que tinha sido nos anos 1960. O antropólogo social especialista em África e professor do ISCTE-IUL Eduardo Costa Dias, que passou por lá, lembra que em Argel havia oposicionistas portugueses, membros do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) e dos outros movimentos de libertação das colónias portuguesas, e desertores da guerra do Vietname.

Manuel Alegre estava em Argel quando Wright chegou, mas não se lembra sequer de ouvir falar da história do sequestro. Lembra-se, sim, de se cruzar com os Cleaver, mas apenas em ocasiões sociais.

O único a escapar em França

Quanto tempo é que ficaram, então, em Argel e como é que se sustentaram? James Nicholson, realizador de um documentário sobre George Brown, Nobody Knows My Name, diz que ele lhe contou que quando a polícia argelina foi buscar o milhão de dólares do resgate para entregar aos EUA lhes disseram para agarrar em quantas notas pudessem.

Kathleen Cleaver garante que não ficaram lá muito tempo, mas escreve que em Janeiro de 1973 os sequestradores ainda lá estavam. Melvin e Brown dizem, no livro, ter partido pouco depois.

Durante uns seis meses, conta Brown no documentário, passaram por vários países antes de chegarem a França. Estiveram na Alemanha, e talvez a técnica que ali usaram tenha ficado para sempre como estratégia de disfarce de Wright: misturavam-se com os soldados da base americana - então de apoio à guerra no Vietname - para não levantarem suspeitas. "Assim pensavam que éramos mais uns." Quando um dia leram no jornal que alguns membros do BPP procurados pelos EUA tinham sido presos em França mas conseguido asilo político, olharam para Paris como a cidade onde poderiam estar protegidos.

Um desses BP que foi para França foi justamente Eldridge Cleaver, defendido pelo polémico advogado Roland Dumas, ministro dos Negócios Estrangeiros de François Mitterrand, que se lembra perfeitamente do caso de Cleaver, mas corta a conversa quando lhe falamos do sequestro do avião, dizendo que não sabe de nada.

As notícias da época relatam que eles foram ajudados por uma entidade religiosa em Paris. Em Maio de 1976 George Brown trabalhava numa gráfica. Ia a sair para o emprego quando foi parado pela polícia. Os outros três - Melvin e Jean Mc Nair e Joyce Tillerson - seriam presos também.

Um único escapou: George Edward Wright. Como e porquê? Brown conta no documentário que Wright e Joyce, um casal, se tinham separado nessa altura - e Wright tinha-se afastado do grupo por causa disso. Mas as autoridades americanas já andariam de olho neles há pelos menos seis meses. Um telegrama da embaixada dos EUA em Paris para o Departamento de Estado, de Novembro de 1975, diz: "Cremos que eles estão em França desde 1973 e estão escondidos em Paris." Há provas, acrescentam, de que contactaram uma embaixada estrangeira para obter documentação para viajar para África. Mas ninguém sabe onde estão, acrescentam.

Teria George Wright já contactado uma embaixada estrangeira, a portuguesa ou a da Guiné-Bissau? O embaixador português na altura, António Coimbra Martins, não se lembra de nenhum caso parecido. Um outro americano exilado em Paris, George Pumphrey, disse a alguns media que tinha contactos em Portugal e que, através de um grupo underground ao qual pertencia, ajudou Wright a pôr-se num comboio em direcção a Lisboa - Portugal poderia ser uma plataforma para chegar às recém-libertadas colónias de Angola, Guiné ou Moçambique.

Pumphrey não especificava quem eram os contactos portugueses e não quis falar à 2. Mas ele, assim como os outros quatro americanos, foram apoiados por uma organização católica, a CIMADE. Jacques Maury, reverendo e presidente da Federação Protestante, lembra-se do caso, até porque testemunhou a favor dos quatro - mas nunca ouviu sequer falar de George Wright. O julgamento dos "Quatre de Fleury", como ficariam depois conhecidos, tornou-se bastante mediático, sobretudo depois da campanha pela não extradição para os EUA.

Dois anos depois de serem presos, os quatro conseguiram então que França não autorizasse a extradição, baseando-se no argumento de que o sequestro do avião e fuga dos EUA tinha motivações políticas devido à opressão racial de que eram vítimas. Porém, os homens teriam de cumprir em França uma pena de cinco anos e as mulheres de três, ditou a sentença de Novembro de 1978. (Hoje, Melvin e Jean Mc Nair continuam juntos, vivem em Caen, Norte de França; George Brown vive em Paris e Joyce morreu em 2000. Jean Mc Nair não quis falar do caso, disse apenas que George Wright é "um homem muito bom".)

Uma carta-passaporte para a Guiné

Por esta altura, enquanto os amigos respiravam de alívio, George Wright devia andar com o coração na boca. De acordo com a sua versão, estava em Portugal, mas esta é uma das partes da história com mais pontos de interrogação. Quando e como chegou? Quanto tempo ficou antes de ir para a Guiné? E como é que chegou à Guiné?

Tinha 35 anos quando supostamente conheceu Rosário Valente numa discoteca em Cascais, a Manhattan, na passagem de ano de 1978 para 1979. Ela tinha 23.

Rosário era filha de um general, José Figueiredo Valente, que iria assumir o comando da zona militar da Madeira em 1979 e a direcção do Colégio Militar em 1984. Era educadora de infância quando o pai a ajudou a ir nessa condição como cooperante para a Guiné-Bissau, disse o próprio à 2. Segundo o processo de extradição, Rosário partiu para a Guiné em Junho de 1981. Wright tinha ido em Agosto de 1980, três meses antes do golpe de Estado de Nino Vieira. O general admite que ajudou a filha, mas diz-nos não ter tido "qualquer intervenção" na ida do agora genro para a Guiné. Sim, conhecia-o antes de a filha partir. Mas nada sabia sobre o seu passado, diz o general, que não quis falar sobre o caso.

Quem terá então ajudado George Wright?

Sem dar grandes detalhes, Rosário Valente deixou uma pista à Associated Press: disse que um oficial de alta patente do exército escreveu uma carta para garantir a sua passagem segura para a Guiné.

É também uma carta, mas escrita por "um governante do Governo português", que refere Lucinda Alves, naquela época secretária de Vasco Cabral, figura histórica do PAIGC e então ministro com várias pastas, incluindo a da Economia. Terá sido essa recomendação, recebida em finais dos anos 1970, início de 1980, que lhe serviu de "passaporte". Segundo um depoimento que a ex-secretária fez para a defesa de Wright, onde diz ter tratado do processo, a carta pedia a "integração e protecção deste cidadão" na Guiné.

Ou seja, Wright chegaria como exilado e a "concessão de asilo político e atribuição de nova identidade" foi aceite. O caso ficaria entre "um número restrito de governantes" guineenses, por sinal, já todos mortos: o Presidente Luís Cabral, o ministro da Justiça Fidélis Cabral d"Almada, o chefe de Segurança Nacional António Buscardini. E o próprio Vasco Cabral, que viria a escrever uma dedicatória ao casal em 1983, num dos seus livros de poesia: "Aos queridos amigos George e Rosário, com o calor da amizade e com a esperança de que a luta dos povos nos levará à Primavera da Humanidade."

Quem foi o autor da carta ninguém quer revelar. À 2 Lucinda Alves recusou falar de nomes "por uma questão ética e respeito pelo passado", mas disse que o caso de George Wright foi "muito especial", comparado com o de outros refugiados políticos. Tudo se processou de forma "transparente", acrescenta. "Havia procedimentos, era tudo muito controlado." Além disso, sublinha, "a Guiné-Bissau não dava nacionalidade e protecção a qualquer um".

Mas a George Wright não foi dada apenas nacionalidade guineense, foi dado um novo nome também. José Luís Jorge dos Santos. Porquê? E terá mesmo sido refugiado? O acórdão do tribunal não dá como provado o facto de ter recebido asilo político na Guiné. Lucinda Alves não quer mais perguntas.

Se tudo isto se tivesse processado oficialmente, teria seguido regras, mesmo na Guiné daquela época, explica-nos Fatoumata Lejeune-Kaba, da Guiné-Conacri e da Agência da Nações Unidas para Refugiados com a área de África. Em nenhuma circunstância o estatuto de exilado/refugiado implica mudança de identidade, mesmo quando atribuído informalmente. Há sempre, sem excepção, um documento oficial - que pode ser uma carta ou um cartão - em que se identifica legalmente a pessoa e legaliza o estatuto.

Era normal, durante o tempo da luta de libertação da Guiné e mesmo depois disso, activistas receberem passaportes guineenses, diz fonte do PAIGC. Wright pode ter sido um desses casos. A possibilidade de Wright ter obtido uma nova identidade de forma fraudulenta é também afastada pelo historiador guineense Leopoldo Amado. Antes de o Presidente Luís Cabral ter sido deposto por Nino Vieira, em Novembro de 1980, "havia fidelidade e controlo", diz. "Ninguém ousava enveredar pela corrupção a ponto de conferir uma identidade falsa a alguém."

Lembra também que, naquela altura, "o passaporte era a solidariedade e a admiração pela luta". Era normal, por isso, que, com o seu passado, Wright tenha sido ajudado pelo Governo. Óscar Barbosa, do PAIGC, que foi assessor de imprensa de Nino Vieira, reforça. "Nessa altura, o país estava em revolução permanente e todos os que vinham de fora e se mostravam solidários com os movimentos de libertação eram recebidos de braços abertos."

"Dizia que não podia voltar aos EUA"

A carta com que George Wright chegou a Bissau não seria, assim, apenas uma recomendação. Era o passaporte para um "país mítico", onde o "ícone" Amílcar Cabral nasceu. Exemplo das lutas de libertação, era ainda o palco onde "tudo o que era de melhor que tinha a ver com a luta do terceiro mundo pela sua emancipação" se passava, analisa Leopoldo Amado.

Bissau era uma cidade pequena, mas multicultural. "Nós, que estudávamos nessa altura no liceu, tínhamos professores de todas as nacionalidades: portugueses, franceses, senegaleses, cubanos, brasileiros, russos", lembra o historiador. "Podíamo-nos interrogar sobre a presença de um americano, mas o facto de ele ser negro permitia que, enfim, o disfarce funcionasse melhor."

O antropólogo Eduardo Costa Dias lembra: "Enquanto toda a gente sabe tudo de toda a gente naquela cidade, também há perguntas que não se fazem. Ou que se fazem, mas para as quais não se tem resposta."

Alguns terão feito perguntas a George Wright. Outros terão achado estranha a presença de um americano, mas sentido aquele embaraço de quem não quer invadir a vida privada.

Em Bissau, começou a dar-se por ele nos campos de basquetebol, sempre rodeado de jovens. Wright era professor na Escola Nacional de Educação Física e Desporto, emprego que, segundo a secretária de Vasco Cabral, lhe terá sido providenciado pelo Governo guineense, assim como lhe foi dada uma casa. Chegou também a dar aulas de Inglês e, no seu primeiro pedido de bilhete de identidade, a sua profissão é mecânico.

"Pelo sotaque via-se que era de origem americana, embora não fizesse questão de se apresentar como coisíssima nenhuma", recorda o jornalista guineense António Soares Lopes, que passava pelo campo de basquetebol onde Wright treinava quando ia jogar ténis. "Integrou-se bem no seio juvenil. Era uma pessoa pacata, amena. Passava quase o tempo todo à volta dos campos de jogos."

Wright foi também um dos fundadores da Escola Nacional de Basquetebol, em meados de 1980, ajudou a reestruturar a modalidade na Guiné. Por essa altura, criaram-se novas equipas e realizou-se o primeiro campeonato nacional. Treinou então o Sport Bissau Benfica e a selecção nacional feminina. Foram os tempos áureos do basquetebol naquele país.

Muitos dos jovens que treinou nessa época vivem hoje em Portugal e estão organizados na Associação dos Amigos do Basquetebol da Guiné-Bissau. Ainda hoje o tratam por Jack. Sempre lhe chamaram Jack, o americano. Ninguém estranhava: na Guiné toda a gente tem um diminutivo.

Havia quem o conhecesse apenas por "o americano", como Carlos Schwarz, 62 anos, engenheiro que foi da Juventude do PAIGC até 1980, e jogador de basquete. Conheceu-o, no início ou antes de 1980, não sabe precisar. Mas ele não era das suas "relações". "Na altura eu estava um bocadinho de pé atrás, achei estranho um americano aparecer cá." Falava-se que ele podia ser "um agente da CIA", até porque em finais de 1970 "os americanos eram mal vistos aqui" e foram entrando na Guiné "com pezinhos de lã".

Não lhe conheceu também nenhum envolvimento político, o que até pode fazer sentido, porque isso poderia levar os americanos a descobri-lo. Anos mais tarde, em Setembro, ouviu a notícia de que ele tinha sido apanhado e a versão de que Vasco Cabral o teria ajudado. Não lhe espanta que, a ter existido apoio, ele não seja do domínio público: "Do que conheço do Vasco Cabral, ele sabia bem o valor de um segredo." Vasco Cabral tinha sido do PCP, preso pela PIDE e vivido na clandestinidade. Teve, ao longo da vida, fortes relações com Portugal.

Hannes Stegemann acha que a história de Wright tem pouco de secreta. Este alemão que hoje trabalha na Caritas e foi responsável por uma ONG na Guiné, a Iles de Paix, lembra-se de ouvir a história do assalto e do sequestro do avião pela voz do próprio Wright, o homem que era o seu braço direito em Bissau (a ONG estava em Bolama) e "à frente da Rosário". "É engraçado como toda a gente sabia que ele tinha fugido da prisão, sequestrado o avião, mas de repente quando o FBI o apanha ninguém sabia de nada." Wright foi-lhe recomendado "por várias pessoas", trabalhou para ele de 1989 a 1993. Lembra-se de que o americano foi várias vezes de férias a Portugal: na sua agenda está Fevereiro de 1991, e Maio e Junho de 1992.

Hannes Stegemann diz que um diplomata americano lhe falou pessoalmente da história da fuga e do sequestro. Mas nenhum dos embaixadores americanos na época que contactámos diz ter sabido do caso. William Jacobsen (1989-92) disse à 2 que nunca ouviu sequer falar dele. John Blacken (1986-89), que o conhecia como George Wright, diz apenas que a determinada altura "havia uns rumores de que ele teria pertencido aos BP, mas só isso". Nunca lhe passou pela cabeça procurar informação sobre ele - seria violar a lei da privacidade americana, defende. "Se o FBI estivesse numa busca intensa nessa altura, teríamos recebido mensagens do Departamento de Estado. Não recebemos."

De facto, a busca de Wright parece ter ficado esquecida pelo FBI depois de Brown, os Mc Nair e Joyce Tillerson terem sido apanhados em França e até 2002, data em que o processo foi reaberto em sequência de uma queixa da filha de Walter Patterson. Há, porém, em 1982, um pedido de captura a Wright da prisão de New Jersey.

Blacken lembra-se também de Rosário Valente como tradutora para a US Aid, a agência de desenvolvimento internacional americana que em Bissau ficava ao lado da embaixada. Daniel Hirsch, número dois da embaixada entre 1992 e 1994, tinha então ouvido dizer que Wright pertencera ao BPP.

Há mais de dez anos a viver num país em que se falava português ou crioulo, George "gostava de ter a oportunidade de falar inglês" - de vez em quando, ele e Hirsch conversavam. "Era aberto sobre ser um ex-membro do BPP e disse que não podia voltar aos EUA. Mencionei isso ao embaixador (Roger McGuire), e parecia que todos sabiam disso. Pensei que era uma coisa antiga."

Ficou com a impressão de que Wright estava lá para ajudar na formação de revolucionários. E nunca precisou que alguém lhe dissesse que ele era americano antes de o conhecer. Sentado no café que nunca fechava depois das 21h, com os quadros que pintava e a conversar: é assim que Hirsch se lembra de George Wright. "Bissau era muito pequena, toda a gente se conhecia. Ele conhecia muita gente. Acho que se sentia seguro."

Com uma população de pouco mais de 100 mil pessoas em 1979, Bissau acolhia também muitos estrangeiros que participavam na reconstrução do país. Os suecos eram dos principais apoiantes desde a luta de libertação. Lars Eliasson, que trabalhou para o Ministério das Pescas, não fala com Wright há uns dez anos, mas conviveu bastante com ele e com a família. Desconhecia o passado do amigo. Ao saber, perguntou-se: "Como é que os posso ajudar?" Quando perdeu um filho na Guiné, um período muito difícil, Eliasson sentiu o apoio de Wright. "Houve pessoas que vieram oferecer a Bíblia, outras comprimidos. George disse: "Há quem lide com o luto embebedando-se. Se escolheres fazer isso, tomo conta de ti"."

Assim como chegou à Guiné sem se saber de onde veio, assim partiu. "Deixámos de o ver", diz Carlos Schwarz.

captura do homem dos cinco nomes

Casas Novas, um lugarejo em Colares, tem, como toda a zona de Sintra, um microclima. É húmido e conhecido pelas noites frias, bem diferentes da temperatura tropical da capital Bissau.

Quando aí chega, em 1993, mudando-se definitivamente para o país, ainda se estará a habituar ao nome português. Três anos antes, no seu primeiro pedido de bilhete de identidade guineense, engana-se na assinatura: antes de José Luís escreve "George", que risca.

Mas para os vizinhos sempre foi José Luís Jorge dos Santos, um homem casado, pintor decorativo, natural da Guiné-Bissau. Assim viveu pelo menos 20 anos, até 26 de Setembro passado, quando foi detido pela PJ, que há meses sabia do seu paradeiro. Terá sido descoberto num telefonema para a irmã, a viver nos EUA. Não ofereceu resistência e admitiu ser quem era: o homem que enganara a América durante mais de quatro décadas.

A história só seria conhecida no dia seguinte. Naquele dia, era já noite, o advogado de Wright, Manuel Luís Ferreira, recebeu um telefonema: a história do seu cliente abria o noticiário da CNN. Passou as horas seguintes a ler. A dada altura, fez-lhe um pedido, contou num debate de apoio a Wright organizado em Lisboa: "Preciso que grave a sua história porque se for extraditado não tenho mais nada seu."

Dois dias depois da detenção, bastou à vizinha Fernanda Tavares pôr os pés fora de casa para os trabalhos de costura que tinha em mãos ficarem para o dia seguinte. Havia todo um circo montado à sua porta. Jornalistas, câmaras e interrogatórios, como se ela soubesse tudo da vida de uma pessoa com um nome que nunca tinha ouvido. Um tal George Wright, fugido há 41 anos da justiça norte-americana. "Conhece este homem?"

Conhecia mesmo. "Se não é ele, é irmão gémeo", respondeu aos jornalistas. Esse homem que lhe mostravam numa fotografia antiga - provavelmente a mesma que aparece no site da Interpol e que durante esses dias inundou jornais e noticiários televisivos - era o sr. Jorge, o vizinho pintor. "Muito bom pintor", aliás. "Um artista."

Não sabia que era americano, muito menos que tinha desviado um avião para a Argélia em 1972. Nem que fugira da prisão.

De repente, tudo batia certo. Antes de Jorge e Rosário terem aparecido por ali, comentava-se que a casa tinha sido comprada por um americano. Quando se mudaram definitivamente, já a casa tinha sido remodelada. Terão vindo várias vezes a Portugal quando ainda viviam na Guiné. Aliás, os dois filhos, de 26 e 21 anos, nasceram em Portugal. Fernanda lembra-se de a ver grávida.

O sr. Jorge tinha um sotaque esquisito e Rosário falava, como ainda fala, em inglês com ele. Mas por ali depressa se esqueceu a história do americano. Afinal, o novo vizinho tinha vindo de África. O pastor Eddie Fernandes, da Riverside International Church de Cascais, que Wright frequentou durante vários anos com Rosário e os filhos, conta-nos a história que inventou para justificar o sotaque: era guineense, daí o nome português, mas tinha crescido e vivido muitos anos nos Estados Unidos.

Ao mesmo tempo que Casas Novas se inundou de jornalistas de todo o mundo, criou-se um movimento de solidariedade. Os Amigos do Basquetebol da Guiné-Bissau foram dos primeiros a mobilizar-se. Criou-se o grupo dos Amigos do Jack, organizado num blogue, e uma conta, associada à campanha 1 Amigo 1 Euro. Surgiu o movimento Contra a Extradição de Jorge dos Santos, com uma página no Facebook, e foi lançada uma petição.

Em Outubro, os amigos do basquetebol organizaram um torneio com angariação de fundos para o apoiar, ao qual Wright assistiu a partir de casa, porque estava ainda em prisão domiciliária. No fim do jogo, os jornalistas puderam entrar, por momentos, em sua casa, onde "Jack" esperava pelos amigos para um almoço com frangos.

Num pátio com entrada por uma porta traseira, apareceu então um homem altíssimo, sorridente e bem-disposto. Com um português nem sempre fácil de entender, contou que gostava de ouvir blues. Pouco mais. Queria sobretudo saber como tinham corrido os jogos. Desvalorizou estar preso em casa: não queria mesmo era deixar Colares e voltar para os EUA.

Nesse dia, Rosário contou-nos que conhecia apenas parte do passado do marido. Sabia que "Jorge" vivia a olhar para trás: tinha estado preso por cumplicidade no homicídio. George tinha sempre sido Jorge ou "Jack". Já tinha substituído a caixa de correio preta ao estilo americano (tinha a inscrição "US Mail") por uma bem portuguesa, dos CTT, farta de ver aquela imagem nos jornais e na televisão.

Os media desvendavam a sua vida. Tinha sido pintor de casas. Foi-se dedicando a sucessivos negócios, todos falhados: teve uma casa de frangos e um restaurante, chegou a explorar o posto de correios da Praia das Maçãs, em Sintra. Entrou num anúncio televisivo de um banco. E continuava com os trabalhos de pintura decorativa, restauros de frescos e murais. Ao longo dos anos, foi-se envolvendo em projectos de voluntariado, como o Serve the City Lisboa, e ainda hoje ajuda a servir jantares a sem-abrigo em Alcântara. Esteve também ligado a uma igreja, a Riverside, que terá ajudado Wright e Rosário, tanto "com emprego" como "financeiramente", segundo o pastor Eddie Fernandes. É, no fundo, um homem muito religioso e espiritual, interessado em cultura e muito dedicado à família, lembra o americano André Cameron. E óptimo cozinheiro, com quem partilhava as saudades da "comfort food", como os americanos chamam a pratos tipo fried chicken ou pão de milho.

George Wright continuaria em prisão domiciliária até 17 de Novembro, quando o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que não seria extraditado. O Supremo Tribunal de Justiça viria a rejeitar o recurso dos EUA, que acabou por não recorrer para o Constitucional.

"Por uma vez ficamos felizes com a justiça portuguesa", disse Ana Benavente, ex-secretária de Estado da Educação que apoiou Wright durante o processo, numa conversa já depois de a decisão de não extradição ter transitado em julgado. O tribunal considerou que não fazia sentido "a extradição de um homem no Inverno da sua vida para, provavelmente, morrer preso (num país de que esteve ausente por 40 anos), afastado da família, por causa de um crime (grave) cometido quando era um jovem". Deu também como provado que Jorge dos Santos é português e que portanto a convenção entre os dois países não permitiria a sua extradição por o seu crime já ter prescrito.

"Este homem conseguiu fazer por si próprio o que o sistema não fez por ele", diria o advogado.

Um ou dois meses antes de ter sido preso, George Wright cruzou-se na Amadora com o jornalista guineense António Soares Lopes, então de visita a Portugal. Conversaram um bom bocado. Wright perguntou-lhe como estava a Guiné, se "atinava ou não atinava". Disse-lhe que estava a pensar dar um salto a Bissau. "Porque dadas as dificuldades de trabalho [em Portugal], talvez começasse a equacionar a hipótese de vir para cá", conta-nos o jornalista.

Se não tivesse sido preso, talvez o homem de 69 anos estivesse agora em Bissau. Seria um George Wright a embarcar como Jorge dos Santos e talvez fosse ainda chamado de Jack pelos amigos do basquetebol à chegada. George de nascimento, Larry Burguess quando embarcou no avião, Alvin quando se refugiou em França, George ou Jack na Guiné, Jorge dos Santos em Portugal. Quantos mais nomes terá tido? Talvez a verdadeira história, fechada a sete chaves, revele um dia todos os segredos do homem que conseguiu enganar as autoridades americanas durante 41 anos.

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