Por que é que já não posso ouvir dizer que "não há alternativas"

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O discurso de que "não há alternativas" é o argumento ad terrorem do Governo e do poder. É falso

Há exactamente um ano, escrevi um artigo sobre as alternativas, aqui publicado em 15 de Outubro de 2011. Estava a falar, na altura, nas alternativas ao cumprimento do memorando da troika, que sempre afirmei existirem mas serem piores. Referia-me essencialmente a "prender os políticos, não pagar aos bancos, confiscar o dinheiro aos ricos e "renegociar a dívida"", propostas pela extrema-direita, pelo BE e pelo PCP, mas, como também chamei a atenção, com muito mais apoio popular do que parecia no discurso "publicado". Hoje, como dantes, continuo a pensar que estas alternativas - que não adianta tratar por outro nome, porque de facto são alternativas - conduziriam a muita miséria. E são piores porque se isso por si só não as distinguiria muito da miséria actual, implicariam a construção de um Estado autoritário, mesmo totalitário. Esse Estado, assente num populismo qualquer, à direita ou à esquerda, em nome de "os ricos que paguem a crise" ou do "combate aos ladrões dos políticos", acabaria por ter uma prática persecutória inaceitável para a liberdade.

A minha principal objecção a estas alternativas não estava na miséria que provocariam, mas no facto de conduzirem a uma violência política contra as liberdades. Não importa que essa violência seja conduzida por uma polícia fiscal ou uma ASAE musculada em nome do combate à "evasão fiscal dos ricos", por uns "comités de vingadores" quaisquer, ou pela multidão na rua. Da república de Weimar, passando pela Argentina peronista, à Venezuela chavista, não faltam exemplos. Continuo a considerar inaceitáveis essas alternativas, em nome da liberdade, mas temo que o discurso actual de que "não há alternativas" seja a principal força que as alimenta. Porque já toda a gente compreendeu que a política concreta deste Governo não é alternativa ao caos, à desordem e à miséria e, acima de tudo, vai falhar o cumprimento do memorando da troika, única fonte de legitimidade a que se tem agarrado no último ano.

Peço desculpa de me citar, mas as palavras com data têm a vantagem de mostrar como era possível prever o caminho deste último ano, sem surpresas de maior, e que quem falhou não o fez por falta de críticas a seu tempo, mas porque tinha um enorme rei na barriga e um pequeno pássaro na cabeça a pensar com 140 caracteres. Em Outubro de 2011 escrevi:

"O martelo-pilão abateu-se outra vez sobre os portugueses sob a forma habitual, impostos, aumentos de preços e reduções de salários. De cada vez que se espera que seja a última, há sempre mais uma. Por isso, a coisa mais fácil de vaticinar é que esta não será a última, e se calhar nem será a mais gravosa. (...) Está-se a caminhar para um ciclo de muito difícil saída. O que de mais gravoso o primeiro-ministro escondeu (...) é que uma parte do descalabro orçamental deste ano e do previsível para o ano já não vem dos "buracos", mas da quebra de receitas do Estado, que torna o aumento dos impostos em grande parte ineficaz. Ou seja, estamos a entrar num círculo vicioso que se pode aguentar um ano ou dois e, em seguida, ficamos "gregos"."

E também escrevi sobre os meus receios sobre a capacidade do governo, esperando, ainda assim, que pelo menos cumprisse aquilo que veio mais tarde a definir como obrigatório atingir "custe o que custar":

"(...) poderíamos desejar um outro Governo mais capaz e imaginativo, poderíamos desejar acima de tudo um Governo mais experiente e melhor conhecedor da realidade nacional, que se tivesse preparado estudando o nosso país e não atirando soluções de catálogo para agradar aos blogues liberais, que não precisasse de estar a aprender ao mesmo tempo que, em absoluto estado de necessidade, precisa do martelo-pilão em vez de um martelo mais afinado, poderíamos desejar tudo diferente, mas é este que temos e se, no final, chegar a 2012 e 2013 cumprindo os objectivos do défice, fará bem."

Não cumpriu e não o fez exactamente porque as minhas suspeitas sobre a sua incompetência e as suas ideias simples e perigosas sobre o país puderam "governar" sem efectiva contestação durante um ano, "porque não havia alternativas". O resultado seria, escrevi-o também há um ano, quando ia alto o consenso à volta da "coragem" do Governo e dos méritos de Passos Coelho, Relvas e Gaspar:

"Os propagandistas podiam poupar-nos as ilusões e a demagogia ideológica: daqui não resultará qualquer Estado mais virtuoso na sua magreza, nem nenhum país mais competitivo, nem um Portugal melhor. Sairá um país mais pobre, exausto, mais dependente, menos culto, menos qualificado, com maiores diferenças sociais, mais zangado e mais violento, e, muito provavelmente, com menos liberdades. E quase de certeza sairá com um Estado mais poderoso (...) e uma sociedade civil mais fraca."

Hoje, o discurso de que "não há alternativas" é o argumento ad terrorem do Governo e do poder. É falso, propagandístico e o seu principal efeito é cobrir tudo o que tenha origem no Governo como sendo inevitável e infalível. Serviu para justificar a meia hora de trabalho suplementar, o IVA da restauração, o aumento exponencial do desemprego, a destruição experimental de parte das nossas pequenas empresas, vistas com desprezo pelos admiradores serôdios das dot.coms e dos gadgets, alimentou o exercício do poder político forte para os fracos e débil para os fortes. Serviria para justificar a TSU se as coisas não tivessem corrido tão mal. E tornou-nos num país que exporta ouro derretido das poupanças familiares, medicamentos que faltam no mercado nacional e que vão para Angola e automóveis devolvidos porque não se conseguem vender. O negócio do ouro, excelentemente personificado num anúncio televisivo de António Sala, marca os tempos actuais como a valise en carton da emigração ou os contentores dos retornados. E tornamo-nos num país que não cumpre... o memorando da troika.

De há um ano para cá, muita coisa mudou no próprio terreno do memorando da troika, nos seus co-signatários credores, na percepção do carácter perverso da "fadiga da austeridade", abrindo novas alternativas que o parceiro português recusou in limine. Mudou o contexto europeu e mudou favoravelmente, mas o Governo português nunca usou a sua boa imagem junto da troika e da Alemanha para obter uma racionalização do programa da troika, sem ser em desespero de causa e em posição de fraqueza pelo incumprimento, porque não quis. A margem de manobra não era muita, mas existia, só que o Governo quis usar o memorando para prosseguir uma agenda ideológica própria e, para isso, era útil ter um pretexto externo.

Fez orelhas moucas a qualquer proposta de alternativa, incluindo as que vinham de sectores que lhe eram próximos, como as prevenções de Manuela Ferreira Leite e do Presidente da República, em privado e em público, nem ouviu a proposta de Miguel Cadilhe sobre uma espécie de imposto de guerra excepcional e duro, que havia condições para aplicar em 2011 e já não há hoje. O mérito dessa proposta, melhorada e modificada, seria traduzir a gravidade da situação num momento excepcional, muito duro que fosse, mas único e limitado no tempo, beneficiando do consenso sobre a necessidade de austeridade que existia em 2011, e o facto de se aplicar a todo o património e não apenas aos salários. Podia atingir progressivamente todos os rendimentos e patrimónios, mesmo os mais baixos, numa altura em que o empobrecimento ainda não tinha feito os estragos que já hoje existem e ainda havia alguma folga. O facto de ser excepcional tinha a vantagem de favorecer a aceitação da sua dureza, porque as pessoas sabiam da gravidade da situação do país e estavam dispostas a fazer sacrifícios. E era uma medida "política" porque manipulava um tempo excepcional como sendo excepcional e não destruía as expectativas de futuro, como o fazem os sucessivos pacotes de medidas de austeridade, sempre insuficientes. Não era a panaceia para as mudanças estruturais necessárias, mas permitia que se fizessem depois com mais folga. Mas o Governo não quis porque o seu caminho era levar a uma brutal queda de salários, e a uma inversão das relações de força sociais, com carácter permanente.

Dou este exemplo, entre muitos, porque havia e há alternativas mesmo na prossecução do memorando da troika para quem não aceita a chantagem de que o país se divide entre quem não quer a austeridade e quem é "bom aluno" e paga as dívidas. Este preto e branco é outra versão do "não há alternativas". De facto, não há alternativas a passarmos sem austeridade, concordo, mas há alternativas a todas as políticas concretas do Governo e elas têm sido apresentadas.

Uma mentira comum da propaganda é estar sempre a dizer que "ninguém apresenta alternativas", o que não é verdade. Mas o Governo não quer ouvir, e onde hoje toca estraga tudo e acabará por ser derrubado ou por cima, porque os poderosos que sempre o apoiaram o vêem hoje como um empecilho e um risco, ou por baixo, pela multidão. Em ambos os casos é um caminho muito perigoso, até porque começa a perceber-se que é um caminho sem alternativas...

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