A beleza dá-me força para lutar contra o cancro

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Sara Coutinho Melo, 43 anos

Faz sentido que alguém com cancro se preocupe com o cabelo, com a pele ou com o estado das unhas? Faz. Os estudos científicos vêm confirmar aquilo que há muito as mulheres descobriram por si próprias - a beleza é fundamental. E no Centro de Aconselhamento Estético do Movimento Vencer e Viver aprende-se a cuidar dela. Por Graça Barbosa Ribeiro (texto) e Nelson Garrido (fotografia)

Elegante, Sara avança com passos decididos para a sala de make up. Ajeita o cabelo, olhando-se no espelho, e depois roda nos sapatos de salto alto e senta-se, com as costas muito direitas, o queixo erguido e o olhar fixo na câmara. Sabe que está bonita, fez por estar bonita, mas, ainda assim, explica ao repórter fotográfico que é importante que as fotos a mostrem bonita. Quer fazer passar uma mensagem: "Cancro não é vergonha e não é morte. Cancro é guerra."

"Sara Coutinho Melo, 43 anos." Diz o nome devagar e verifica se foi escrito correctamente. Dar a cara, identificar-se, faz parte da sua missão e não quer ser mal entendida. Recuperou do silêncio imposto pelas metástases cerebrais, mas a fala continua hesitante. Sorri, sem embaraço, quando a palavra certa lhe foge; e ri a contar que muitas vezes os desconhecidos confundem aquelas pausas, a meio de uma frase, com as dificuldades de um estrangeiro no domínio do português. "Perguntam-me: "Francesa? Inglesa? Alemã?" E eu respondo: "Não. Portuguesa com cancro. Vigia as tuas mamas!"" Sabe que é desconcertante. Aposta nisso. Causado o choque, desfaz com um sorriso o constrangimento que provoca nos outros: "A sério, vigia as tuas mamas!"

Sara posa na sala em que funciona o Centro de Aconselhamento Estético do Movimento Vencer e Viver. Um espaço inesperadamente alegre na sede de Coimbra daquele braço da Liga Portuguesa contra o Cancro. É uma mistura de estúdio fotográfico moderno (dominado por um chapéu-de-chuva prateado que distribui uma luz suave e envolvente) e de sala de maquilhagem de telenovela juvenil, com as paredes corridas a uma tira de tinta rosa-choque.

De um lado o espelho e uma mesa forrada com produtos de maquilhagem coloridos; do outro, um armário de onde saem turbantes mais ou menos provocantes, gorros juvenis ou discretos e cabeleiras de todos os tons, com cortes simples ou sofisticados.

A ideia de criar aquele espaço, que rapidamente atraiu patrocínios e apoios diversos, concretizou-se este ano, em Abril, mas germinara há muito. "Acho que pensava nisto desde que tive de ir ao Porto, subir umas escadas estreitas, sinistras, e entrar num compartimento sombrio onde um homem me estendeu uma peruca sem forma nem corte", diz Salete Bastos, coordenadora regional e nacional do movimento.

Foi há 11 anos e a prótese capilar que adquiriu antes de iniciar a quimioterapia custou-lhe o equivalente a 1000 euros. Aquela que agora roda nas mãos - assim como todos os outros produtos que estão no gabinete - é vendida a preço de custo (cerca de 60 euros): "Todas as mulheres têm direito a cuidar da sua imagem durante a doença. É muito, muito importante", diz a coordenadora.

Uma espécie de encenação

Não é por acaso que as voluntárias do movimento são todas sobreviventes de cancro na mama. Sabem por experiência e instinto o que outros estão agora a validar cientificamente, depois de anos de investigação. "As mulheres que investem na sua própria imagem durante os tratamentos mantêm uma relação mais positiva com o seu próprio corpo ao longo da doença e em fase de recuperação e estão menos sujeitas a depressões", confirma Helena Moreira, uma investigadora da Faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra que, em Janeiro, defende a sua tese de doutoramento sobre a imagem corporal da mulher com cancro da mama.

Aquela investigadora fala na importância da gestão da imagem como um factor protector, associado a uma sensação de domínio sobre a realidade numa fase da vida da mulher em que tudo parece fugir ao seu controlo. Sónia Silva, que também faz investigação na área da psico-oncologia e trabalha como psicóloga voluntária na Liga Portuguesa contra o Cancro, recorda estudos recentes que demonstram que as pessoas consideradas bonitas são mais confiantes e transmitem uma imagem de maior competência, o que contribui para um maior sucesso em entrevistas de emprego e na conquista de cargos mais bem remunerados.

"No momento em que provavelmente enfrentam o maior desafio das suas vidas, essa autoconfiança é muito importante, essencial para que as mulheres consigam colocar a doença no seu lugar e se sintam competentes para a enfrentar. Destroçada por dentro, linda por fora: The show must go on!", continua Sónia Silva.

Não é só a expressão informal da psicóloga que remete para um mundo de espectáculo, em que a vida dita normal se transforma, de um momento para o outro, numa espécie de encenação, que tem de se manter a todo o custo para evitar que tudo, à volta, comece a ruir.

A decoração do Centro de Aconselhamento Estético também transporta quem lá entra para um universo de fantasia. Contudo, é à linguagem bélica que as mulheres com cancro recorrem para expressar a importância que aquele apoio tem nas suas vidas. Quando dali saem entram num palco - mas num palco de guerra.

"Sentir-me bonita é essencial, é a minha armadura", diz Fátima, de 38 anos. "A minha imagem é o meu escudo e, ao mesmo tempo, a minha arma", descreve Teresa, de 52. "Não preciso de pena, preciso de força. E a beleza dá-me essa força, permite-me avançar assim", insiste Sara Coutinho, atirando os ombros para trás e erguendo o queixo, como quem enfrenta um inimigo.

Vivem momentos diferentes. Fátima, uma enfermeira com um rosto jovem e bonito sob a farta cabeleira negra, mãe de três filhos, divorciada, está a fazer o primeiro ciclo de quimioterapia, antes da cirurgia. Teresa, educadora, com uma filha adulta e um casamento estável, já fez a mastectomia e enfrenta um novo ciclo de quimio. Sara é uma veterana: "Primeiro mama, dois anos depois ovários e útero e em 2004 cérebro", enumera. Faz uma pausa e com o indicador aponta, sucessivamente, as três datas escritas num bloco de apontamentos: "Uma, duas, três. Doze anos, três batalhas. Todas vencidas." Para além de dificuldades na fala, a radioterapia tornou permanente a falta de cabelo. "E de sobrancelhas", aponta, sem embaraço. Estão pintadas, a lápis - quem não souber não repara.

Apesar de não haver investigação significativa na área, os poucos estudos que existem mostram que a perda de cabelo provocada pela toxicidade dos tratamentos químicos para o cancro da mama é um dos grandes desafios que estas mulheres enfrentam.

Fátima diz que sempre foi vaidosa dos seus cabelos negros, longuíssimos. Ainda não perdeu a mama, mas já sabe avaliar a dor de não se reconhecer no espelho. "Já tinha comigo a prótese, muito parecida com o meu cabelo natural, quando fui ao meu cabeleireiro rapar a cabeça. É um acto íntimo, doloroso, estávamos ambos muito emocionados", diz. Teresa conta que não chorou quando viu a cicatriz no peito. Mas que antes disso, quando cabelo começou a cair, se desfez em lágrimas: "A mama tinha o mal, quanto mais depressa o tirasse melhor. Mas a perda dos cabelos, das sobrancelhas, das pestanas... Olhava e não era eu!"

Sónia Silva lembra que são muitos e às vezes contraditórios os sentimentos que naquele momento dominam a mulher. Para além de a imagem fazer parte da identidade de cada um, a perda do cabelo ainda está muito associada à doença como sendo consequência do cancro e não do tratamento, nota. "Não suporto que olhem para mim como se eu tivesse recebido uma sentença de morte", confirma Fátima. E, no entanto, a procura de ajuda e o investimento na imagem nem sempre é fácil.

Muitas mulheres, conta Helena Moreira, mostram-se embaraçadas por atribuírem tanta importância à imagem. Dizem: "Tenho uma doença potencialmente fatal e estou a preocupar-me com o cabelo, com o inchaço, com as unhas. O que é que os outros hão-de pensar?"

Guerra solitária

A guerra que cada mulher trava acaba por ser muito solitária e, mesmo que se esforcem, os familiares e amigos nem sempre conseguem quebrar essa outra armadura em que a mulher com cancro da mama se fecha. Por exemplo: é positivo que a façam sentir-se bonita, mas relativizar a doença, a queda do cabelo, a perda da mama, pode ser entendido como falta de empatia, de compreensão e de respeito pela sua dor.

Aliás, nada é simples. Quem investia na imagem de forma saudável e continua a fazê-lo após o diagnóstico, sem "deixar o corpo desistir", como descreve Sara, tem menos depressões. Mas as mulheres que antes da doença davam um valor disfuncional ao seu aspecto físico, fazendo depender dele a auto-estima e confundindo-o com a própria identidade, estão mais vulneráveis do que as restantes, concluiu Helena Moreira.

Um dos estudos aponta para a necessidade de os profissionais de saúde observarem qual o valor que cada mulher atribui à sua imagem, particularmente no início da doença, "para que, ao longo das fases que se seguem, possam ser implementadas as estratégias adequadas". Isto implica também a divulgação dos vários meios que a mulher tem ao seu dispor (das próteses mamárias à cirurgia reconstrutiva, passando pelos lenços e turbantes durante a quimioterapia). E é neste campo, considera Helena Moreira, que a disseminação de centros do género do que existe em Coimbra, criado pelo Movimento Vencer e Viver, se torna fundamental.

Fátima e Teresa dizem que não sabem como teriam aguentado, sem aquele apoio. Uma emociona-se quando fala dos filhos pequenos, do cuidado que tem para que a vejam sempre bem. A outra confessa que nem gosta muito "dos cabelos alourados, de dondoca", mas que a revolução na imagem é compensada pelo olhar do marido, que a acha "ainda mais bonita". Nenhuma quer apelidos ou fotos no jornal, algo que Sara não compreende. "Não é bom. Uma pessoa de costas, na fotografia, passa a imagem errada. Cancro não é vergonha", protesta.

Helena Moreira compreende as três. E acredita que, um dia, Fátima e Teresa entenderão a postura de Sara, que "com a mesma coragem de figuras públicas, como Fernanda Serrano, se expõe para combater o estigma do cancro da mama e mostrar que ele acontece a qualquer uma e que não é necessariamente destruidor e mortal". Sara é menos paciente, esquece que as outras só agora estão a vestir a armadura dentro da qual ela já se move com destreza. É a sua força que exibe quando enfrenta a câmara, determinada: "Não é vergonha, não é morte. É guerra."

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