Em defesa de mais liberdade para os deputados

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A mistura das regras eleitorais com a cultura partidária empobrece a vida parlamentar

1.Nos idos das duas últimas semanas, houve um acontecimento parlamentar que ganhou tomo e tamanho. Confesso que só lhe dei a importância devida, assim que me apercebi de uma onda crítica. Trata-se da iniciativa de alguns deputados do PS, em aliança com deputados do Bloco, de promover a fiscalização da constitucionalidade da lei do Orçamento. Em jogo está o carácter alegadamente inconstitucional do corte dos subsídios de Natal e de férias aos funcionários públicos. Muitos e sortidos comentadores censuraram o procedimento dos parlamentares socialistas e mesmo os jornalistas deixaram entrever, por entre artigos e relatos, alguma reserva e desconforto. A crítica à actuação dos deputados "irredutíveis" do PS parece assentar essencialmente em dois ângulos de observação.

2. Vista por um primeiro prisma, ela representaria uma deslealdade para com o líder do PS e a direcção parlamentar, já que estes, apesar de apregoarem a desnecessidade de um corte tão drástico, se tinham decidido pelo voto de abstenção. Alguns, mais maquiavélicos, chegaram a insinuar que se curava de uma manobra de facção, industriada por nostálgicos de Sócrates, que querem atrapalhar a liderança de Seguro. E outros, mais benignos, falando em comportamento contraditório dos "irredutíveis", perguntam: como é possível que deputados que se abstiveram na votação da lei do Orçamento venham agora usar o argumento da violação da Constituição? Se a lei violava a Constituição, deveriam, em nome da coerência, ter votado contra...

3. Visto por um outro lado, o recurso ao Tribunal Constitucional (TC) - em si mesmo considerado e para lá de qualquer tensão partidária interna - seria de afastar por pôr em risco o trajecto de consolidação financeira e orçamental do país. Houve até quem visse nessa acção um perigo latente de "judicialização" da política, transportando para os tribunais - neste caso, para o tribunal ao qual cabe dirimir os litígios de ordem política - a responsabilidade por decisões que transcendem os parâmetros jurídicos.

4. Este tom de censura e crítica - generalizado, imediato e com estranhos foros de auto-evidência - ao exercício de um direito e de um dever dos deputados mostra bem quão hostil é a nossa esfera pública à assunção de uma cultura parlamentar plena e madura.

Todos os dias se criticam os políticos - e bem - pelo seu apego ao carreirismo e pela sua falta de independência em face dos aparelhos partidários. Muitos se exasperam - e bem - com a propensão para a submissão, a obediência e a cumplicidade dentro das casernas partidárias. Mas sempre que desperta algum sinal de autonomia e de pensamento próprio, de expressão razoável de uma atitude política individual, capaz de dar sentido e conteúdo útil à ideia de representação eleitoral, logo aparecem os defensores do "establishment"a zurzir nos "deputados" irresponsáveis e a receitar-lhes recato e disciplina.

5. Em primeiro lugar, é bizarro que ninguém tenha notado que António José Seguro - que foi, merecida e reconhecidamente, um dos deputados portugueses que mais contribuíram para o fortalecimento da cultura parlamentar do regime - se propôs acabar com a disciplina partidária rígida no PS. Eis uma proposta ousada e corajosa. Mas não deixa de ser caricato que quem defende a regra geral da liberdade de voto possa sentir-se afectado pelo mero exercício da legitimidade dos deputados para promover a fiscalização da constitucionalidade.

Em segundo lugar, vale a pena perguntar: devemos estimular ou cercear o esforço individual dos deputados para, embora respeitando as linhas essenciais do respectivo mandato partidário, criarem uma agenda própria de representação de causas e bem assim dos seus eleitores? Será que estamos circunscritos ao modelo do deputado que, como um boneco articulado, "senta, levanta, aplaude e cala"? A coragem de votar diferente, a capacidade de fazer declarações de voto, a apresentação de iniciativas individuais, a criação de uma agenda própria, a activação dos mecanismos de fiscalização política e jurisdicional são os instrumentos de valorização e de responsabilização do deputado.

E em terceiro lugar, não se percebe o argumento da contradição ou incoerência. Alguns dos deputados do PS abstiveram-se por respeito ao compromisso da disciplina partidária, mas apresentaram declarações de voto e, com isso, exprimiram a sua posição e as suas dúvidas; posição e dúvidas que fizeram verter no pedido entrado no TC...

6. Estou intimamente convencido, até como curioso das coisas do direito constitucional, de que as medidas previstas no Orçamentos são indispensáveis e não violam a Constituição. Mas parece-me perfeitamente natural que outros não pensem assim e que, estando investidos numa missão pública (o mandato parlamentar), actuem em conformidade. Estranho e censurável seria fazer o contrário. Quanto ao risco dos efeitos, os efeitos de uma sentença favorável são modeláveis pelo TC, e quanto à alegada "judicialização" da política (perigo sempre de esconjurar), parece neste caso - porque há um caso jurídico - um manifesto exagero.

7. A essa onda crítica, leve e apressada, subjaz uma cultura de aversão à liberdade e auto-responsabilidade dos deputados. Cultura que é ainda causa e consequência do sistema eleitoral. Um sistema eleitoral com listas bloqueadas, integralmente impostas pelas direcções partidárias, nacionais e locais, amantes da fidelidade e zelotas da obediência.

A mistura das regras eleitorais com a cultura partidária empobrece a vida parlamentar, impede a abertura de canais de vinculação entre os deputados e os eleitores, frustra e defrauda o princípio constitucional da representação política. Quanto mais se asfixiam os deputados nas quatro paredes da disciplina parlamentar e partidária, mais se enfraquece a democracia e a participação, mais se reforça a "partidocracia" e a entropia galopante do sistema político. Deputado europeu (PSD), vice-presidente do Grupo Parlamentar do PPE; paulo.rangel@europarl.europa.eu

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